O
  Vizinho e a Filarmônica
Cyro
  de Mattos
  
 O
  vizinho ainda conserva o hábito de sentar na cadeira de vime, colocada no
  passeio quando é noite de lua clara. Vem tirar bons dedos de prosa enquanto a
  brisa ligeira passa pelos cabelos brancos e suaviza o rosto de pele enrugada.
  Às vezes, pigarreia, descansa, retoma daí a instante o rumo da conversa na
  voz cansada.
 O
  vizinho contou-me certa vez que a primeira filarmônica não saía tocando pelas
  ruas. Quando era inverno, chovia bastante no arraial, as ruas esburacadas
  estavam sempre cheias de lama. Alguns comerciantes mandavam enfiar garrafas
  de cabeça para baixo na terra centenária. Os fundos das garrafas, unidos,
  formavam um passeio diferente, servindo para proteger da lama a entrada dos
  estabelecimentos na rua do comércio. Era aí nesses passeios feitos com fundo
  de garrafa que a filarmônica tocava em tempo de festa.
 Segundo
  meu vizinho, as Filarmônicas Lira Popular e Minerva tiveram presença marcante
  na cidade quando surgiram as primeiras ruas calçadas. Cada uma queria ser
  melhor do que a outra quando se apresentavam sob o entusiasmo de seus
  componentes e admiradores. Pertenciam a partidos políticos que mantinham uma
  rivalidade das mais aguerridas.
 As
  filarmônicas quando iam tocar em tempo de eleições evitavam-se encontrar
  pelas ruas estreitas. Teve uma vez que se encontraram numa rua tão estreita
  que não puderam passar as duas ao mesmo tempo. Como nenhuma delas resolvesse
  recuar para que a outra passasse, houve discussões, bate-boca e xingamento.
  Uma gritava “Viva a Lira!”, a outra respondia “Morra!” Ânimos acesos, entre
  gritos e vaias, a confusão generalizou-se, com socos, pontapés, gritos e
  desmaios. Foi comentário na semana que houve feridos e mortos.
 Por
  motivos óbvios, daí em diante não se viu mais uma filarmônica passar em
  frente da sede da outra, tocando em tom provocativo.
 A Filarmônica da Euterpe ensaiava numa casa
  antiga, que tinha um palanque em frente da praça. Apresentava-se no palanque,
  durante os festejos de fim de ano ou no tempo de eleições, antes que os
  candidatos desfilassem com seus discursos inflamados. Nos domingos tocava
  marchas, hinos pátrios e valsas. O povo na praça encantava-se. Num êxtase de
  onda, sentia as horas passando com prazer por meio de sons harmoniosos.
  Escutava a prata do clarinete, o ouro do saxofone, a flor da flauta, o brilho
  do pistão e os diamantes na caixa. Havia o riso entre os assistentes quando o
  homem bigodudo dava sopros gordos na tuba. O povo dançava na praça quando a
  filarmônica convidava a todos para voar na valsa.
 Não
  sei como explicar a sensação que até hoje me acompanha quando vejo uma
  filarmônica tocar no coreto de qualquer cidade. Quando era menino, não podia
  ver a filarmônica passar tocando na rua. Saía atrás apressado, acompanhando-a
  alegre pelas ruas da cidade. O sonho àquela noite era sereno, sob acordes e
  modulações de uma onda que me levava, em tom festivo, pelas zonas suspensas
  do puro encanto. Não perdia uma apresentação da filarmônica nos festejos de
  fim de ano, com quermesses armadas na praça em frente da igreja, ou no coreto
  do jardim. Cheguei a assistir vários ensaios da Filarmônica da Euterpe sob a
  batuta do maestro Elpídio, no prédio do Montepio dos Artistas.
 Não
  consigo entender por que a filarmônica deixou de tocar de uns tempos para cá
  na praça ou coreto do jardim. Fico entre saudoso e triste com a ausência de
  suas tocatas. Sinto que a filarmônica vai ficando cada vez mais no aceno
  triste das distâncias. Tornou-se como uma mancha imprecisa que se instalou na
  memória da chuva. Para acendê-la um pouco com os raios do sol que brilhava no
  verão, tomo como via plausível de revê-la ouvir o poeta Chico Buarque de
  Holanda. Coloco o CD no aparelho de som. Na parte em que o poeta fala da
  banda é que me encanto ainda mais. Aparecem sentimentos, levando-me de volta
  a um tempo perdido na fuga dos anos. O coração pulsa como se tudo de repente
  acontecesse novamente. As pessoas nas janelas e passeios vinham conferir a
  banda que passava tocando, puxando pela cauda meninos afoitos no tempo
  iluminado de amor.
 Amanhã vou convidar o meu vizinho para de
  novo ouvirmos Chico Buarque. Vamos assim assistir a filarmônica, vê-la pelas
  ruas tocando, os seus componentes trajando o uniforme bonito, com alamares
  nos ombros, fios dourados nos punhos. Vamos retirar da alma pedaços coloridos
  da infância, viajar no tempo em que ouvíamos a filarmônica na praça. E
  voávamos
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*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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