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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Médico na Estrada  

 Cyro de Mattos            

 


          Sabemos que como guardião da saúde o médico é fundamental para a vida, oferecendo em suas atividades a cura ou o alívio, no tratamento das doenças. Apresenta-se no ambiente como a manhã vestida de branco, acenando para debelar as distorções e lesões no corpo humano. Sua experiência traduz-se na doação ao outro, sem nunca recuar no duelo entre o dia e a noite. Nessa função de enfrentar a indesejada, em qualquer parte dos confins, teve no antigamente ferramentas sem os avanços tecnológicos de hoje quando então tudo era mais difícil. Ressalve-se que será sempre difícil salvar uma vida quando tudo parece que chegou ao fim.

         Não é dos médicos de hoje que pretendo tecer algum comentário nesse dia especial em que se comemora o ser-estar desses homens e mulheres de branco. Quero mostrar um pouco do que acontecia com algum deles isolado na vila quando esta servia como um burgo de penetração na conquista da terra. Tinha vida modesta, a maioria da clientela era constituída de gente com poucos recursos, donos de pequenas glebas de terra, com lavouras de milho, feijão e mandioca. Pagavam os honorários médicos com peru, galinha e porco. 

        Quando ia atender o doente que morava na fazenda com a família, a viagem era feita em lombo do burro, sequenciada por trechos íngremes da estrada, subidas e descidas com pedregulhos. Levava a maleta com o estetoscópio, seringa de aplicar injeção, bisturi, tesoura. Uma pasta com algodão, garrafa de álcool, mertiolate; linha, agulha, gaze, esparadrapo, amostras grátis de remédio e outras coisas pequenas. O guarda-sol para aparar a chuva ou protegê-lo quando o sol esquentava. Viajava cedo, saindo pela manhã, antes de o sol se levantar. Em caso urgente, viajava durante a noite. Seguia na estrada solitária, o burro cadenciado nos passos que martelavam a noite em silêncio, quase sempre picotada pelo cicrilar do grilo ou misturada com o agouro da coruja.     

       Fazia vários partos complicados. Incansável, curava, aliviava. Fosse impaludismo, crise de asma, inflamação no apêndice e vesícula. Operava o tumor intumescido como um botão grande debaixo da pele. Engessava a perna ou o braço quando o acidente era causado por um coice de burro ou queda no animal. Aplicava soro antiofídico contra picada de cobra. 

     Quando chegava à casa do pequeno lavrador, via nos olhos do doente, da mulher e filhos que o medo da morte era afastado com a sua presença. Luz da esperança estava acesa no interior da casa rústica, todos confiantes que a doença agora fosse debelada com a intervenção do médico.  Podia até ser de cor, nessas horas críticas não importava, não provocava qualquer espécie de constrangimento, rejeição por quem, em outros lugares e momentos, olhava para ele com ares superiores de indiferença. 

       Alguns desses pacientes eram também de cor como ele, outros mestiços pardos, acaboclados, poucos brancos e alourados. Até esses de cor branca não demonstravam estranheza com a sua visita porque o médico que chegava para tratar um caso de doença grave tinha a pele escura como a noite apagada de estrelas. O que importava era que ele viesse com o seu conhecimento para salvar a vida que corria perigo. 

       Esse médico pioneiro da medicina que ainda se arrastava na cidade pequena inspirou-me um poema que incluí em nosso livro Cancioneiro do Cacau, como homenagem a quem cuidou de nossos ancestrais com mãos tranquilas. Ó que lições me ensinou com seu trabalho enquanto a vida er dura e inóspita.

       Este é o poema:

 

Médico

 

Ritmando a morte

Nas terras do sem fim.

Ele no burrico

Encontra a mata

Mal o sol desponta

E a aurora acena. 

Sem pressa segue

Na estrada útil, 

Solitária, sombria. 

Na pobre valise

Onde a vida dorme

Segue para vencer 

A noite que foge

Para não escutar

O primeiro vagido 

Na clareza do dia. 

 

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

A poesia de um rio enfermo

Denise Emmer


 

            O rio do menino poeta, de águas claras e translúcidas, onde de peito nu ele nadava impetuoso, a se imaginar um herói, peixe do vento, ou mesmo uma ave aquática, hoje padece da enfermidade que assola a natureza. A poluição, por abandono e descaso com a vida. De sua juventude solar ele nos conta, logo na última parte deste Trilogia do Rio, que é para ler e pensar:

            Houve a expressão livre do sol lavando meu rosto, a vida se desvendava com a magia das cores.

            Esse rio de inúmeras pedras pretas, espalhadas nos peraus e no raso, divide a cidade de Itabuna em duas partes, no interior da Bahia. Foi o rio das lavadeiras, que de lavar as roupas de gente abastada ganhavam o sustento e coloriam as pedras quando nelas colocavam as roupas para secar ao sol de manhãs claras. Era um rio de águas límpidas e peixes em abundância. O poeta nos diz em comoventes versos sobre o rio do seu passado quando as correntes brilhavam na diáfana pureza.

            Havia as lavadeiras nas pedras, havia borboletas no barranco, havia o sol na canoa, havia as fotos da lua.

            Ele nos conta uma triste história, em versos de onda em onda, que nos fazem sentir outras águas, verter lágrimas e lamento, ao saber que esse rio hoje é um doente sem cura, ao invés de reger barcos ou levar em seus braços os nadadores meninos transporta dejetos e vômitos, qual um depositário de restos. Mas Cyro revela em poesia, como só os poetas sabem, essa trágica realidade que nos comove e alerta. Transcrevo então outro trecho do livro, de rara beleza poética.

            Sem mergulhos agora, competente abundância, espumas se escondem pastosas nos vômitos para que serves enfermo sem brilho nas escamas, sem teus cachos de água que sempre inventavas?

            Diante do cenário triste, que se revela o mais nefasto como acontece na finitude das coisas puras, o poeta prossegue seu navegar por entre as chagas e os restos.

            Vômitos e excrementos no funeral das águas eliminaram a paisagem clara.

            Tal qual o rio Amazonas, onde flutuam doses químicas jogadas por mãos humanas, o Cachoeira da infância do poeta, de águas puríssimas, lugar de mergulhos solares dos meninos de Itabuna, agora integra outra paisagem, de negações e tristezas. Como consequência dos abusos terrenos faz parte do funeral do mundo e de toda a natureza. Antes deslizava com suas águas claras, hoje se mostra agônico, que dá pena a quem vê. Como ocorre com o rio de Heráclito, a pessoa não vai poder se banhar nele duas vezes. Há tempos, como se fosse um esgoto a céu aberto, sofre com a transformação que o tempo lhe impingiu. Entre as ocorrências do universo, que em seu devir está sempre em transformação, esse rio generoso “se desvendava / com a magia das cores / (...) em que “viver era aventura/ desenhada pelas mãos da infância”. Há tempos desce desfigurado quando então “espumas se escondem / pastosas nos vômitos”.

Apesar da crueza descrita nesse poema denúncia, o poeta Cyro de Mattos – nome essencial da moderna literatura brasileira – nos traz nesse livro a poesia pura e genuína de quem sabe que o “fazer poético” é vocação e trabalho. A poética líquida de Cyro de Mattos, é, portanto, fundamental por sua temática universal, bem como pela rica e plena poesia de invenções imagéticas e ritmo encantatório, como o do rio de outrora que hoje padece no terminal. São poemas para reler e pensar sobre o que fizemos com o planeta.

 

*Denise Emmer, poeta premiada, ficcionista renomada, Doutora em Música, musicista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

 Os Cem Melhores Livros da Crônica

Cyro de Mattos

 



          Ultimamente a crônica tem sido considerada e bem divulgada no Brasil. Infelizmente a universidade, que há tempos comanda a literatura brasileira, não tem dado importância à crônica, em teses de mestrado e doutorado.

          Não se vê a crônica estudada e comentada por lá, se não estou equivocado. Uma pena. A lista dos cem melhores livros de crônica no século XXI elaborada pela conceituada revista da crônica RUBEM é um reconhecimento valioso do gênero. Pode não estar completa, haver discordância, como faz referência disso quem elaborou a lista.

           Não se deve estranhar a ausência nessa lista de ícones do gênero, como Rubem Braga, Drummond, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pólvora e Stansilaw Ponte Preta. É porque a relação enumera livros da crônica em primeira edição e não os melhores cronistas do século XXI Foi uma boa surpresa ver nosso livro Alma mais que tudo ser selecionado nesta classificação. Cometeu a lista pecado de omissão com o cronista Antônio Lopes? Teve esse autor livro de crônica publicado em primeira edição no século XXI? Em caso positivo houve omissão na lista.

          Fui o primeiro a escrever na Bahia sobre o cronista Antônio Lopes. Ele apareceu lá em nosso apartamento com uns textos breves de prosa, esboços de assuntos e esquetes publicados na imprensa local. Pediu-me para ler e, se gostasse, fizesse um texto de apresentação sobre seu primeiro livro de crônicas breves. Gostei e fiz. E lá estão na orelha do livro minhas impressões sobre Buerarema falando para o mundo. De lá para cá, o autor só fez crescer com suas crônicas prazerosas.  

          Foi uma pena o escritor e jornalista Antônio Lopes ter se desligado da Academia de Letras de Itabuna. Faz falta. Agora soube que também se desligou da Academia de Letras de Ilhéus. Quais seriam os motivos que afastaram o cronista das duas entidades Não se sentia útil no ambiente ou vice-versa? Como se trata de ato pessoal, devemos respeitar, não censurar nem patrulhar. Não deve ter sido fácil tomar as duas decisões. Depois que se afastou, vem mantendo uma postura ética louvável, não fala mal das duas instituições e de seus membros, continua amigo de seus antigos confrades e confreiras.

          Lopes andou residindo em Juiz de Fora alguns anos, mas agora retornou ao Sul da Bahia. Mora em Ilhéus. Parece esquecido no ambiente literário local, mas não ficarei surpreso se aparecer a qualquer momento com um bom livro de crônicas ou de ficção para brindar seus leitores com a novidade. Talento tem para isso, nunca precisou do espaço acadêmico para aparecer ou impulsionar sua genuína carreira literária.

          Quanto aos melhores livros da crônica no século XXI, convenhamos que você ter um livro de sua autoria numa relação dessa importância sobre o gênero, elaborada por um veículo cultural de valor indiscutível, como a revista da crônica RUBEM, é um reconhecimento valioso. Ainda mais quando nessa lista figuram livros de Luís Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, Affonso Romano SantAnna, Ignácio Loiola Brandão, Rui Castro, Danuza Leão, Rubem Alves, Fabrício Carpinejar, Fernanda Torres, Milton Hatoum, Daniel Munduruku, Luís Ruffato, Domingos Pellegrini, Walcyr Carrasco e tantos cronistas de excelente expressão e qualidade.

          Que sorte! Um cronista do interior baiano no meio de tanta gente boa. Agradeço à Literatura, em primeiro lugar a Deus.

 

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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sábado, 5 de julho de 2025


Uma noite feliz, Cativante e de encantamento.

 Cyro de Mattos



Show musical Águas de Meu Rio, poemas de Cyro de Mattos  musicados por Lima Junior. Beleza!

Lá estava na plateia muita gente bonita de Itabuna. 

E no palco o compositor Lima Junior, estrela da noite, a cineasta Raquel Rocha, o músico Emerson Mozart, o apresentador Rafael Gama, o cantor Sérgio Sepúlveda, o pianista  Márcio Tadeu, engenheiro de som Adilson Nascimento.

Destaque no público  as alitanas Tica Simões, Raimunda Assis, o advogado Rocha, esposo de Lurdes Bertol, o vereador Clodovil, o médico Pedro Bezerra, o escritor Ademilton Batista, o professor doutor Efferson Braga, a professora Jussara, diretora da Escola Arco-Iris, o  ativista cultural Egnaldo e o empresário médico José de Melo Neto. . .

E muita gente bonita na plateia.

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terça-feira, 3 de junho de 2025

Autores do Sul da Bahia 

Cyro de Mattos 

 


ADONIAS FILHO
"Diferente de Jorge Amado, que se interessa mais em contar a história de princípio, meio e fim, com personagens previsíveis, vinculada aos saberes populares, Adonias Filho tem na forma e ideia uma técnica revolucionária de inventar um drama, uma tragédia. E
scritor de alto nível estético, denso, elíptico, de estilo poético no fraseado que ultrapassa o regional e alcança o plano universal porque em sua narrativa há muito de simbolismo. Às vezes sua linguagem tem entonação bíblica. A paisagem humana não é trabalhada em nível do típico, exótico, e o cenário, tanto na geografia intimista da zona cacaueira baiana como na urbana, é formado de magias e mitos. Um mestre na armação do drama, na condução da tragédia. Sua obra é uma  das perpendiculares da moderna ficção brasileira. “

FLORISVALDO MATTOS 

“Meu amigo e patrício. Poeta de minha admiração. De lastro clássico, versos extensos.  De estro enorme, no épico, histórico, solidariedade social, evocativo do campo com fatura lapidar.  Desde o início, o bardo de Água Preta une o eu lírico ao artesão da palavra com os instrumentos do sonho, sonoridades e metáforas incandescentes de esperança resultando no discurso vigoroso, encanta a quem lê.” 

HÉLIO PÓLVORA 

“Meu conterrâneo, deu-me o prazer de ser o primeiro crítico arguto que se debruçou sobre um livro de nossa autoria, foi muito generoso, não precisava tanto, coisas de conterrâneo.   É visível que a vocação desse contista tende para as intenções de recolher e transformar na arte genuína as impressões que a vida propõe nos momentos habitados por vozes vertiginosas. Seu conto Os Galos da Aurora é um primor da prosa de ficção curta. Bastava que escrevesse as quatros narrativas antológicas de Mar de Azov para ter seu lugar assegurado na literatura moderna brasileira 

JORGE AMADO 

“Homem de coração bom. Mantivemos uma rica relação de amizade.  Também nascido em terras de Itabuna, Escritor grandão, de linguagem sensual, despretensiosa, em sua maneira fraternal de conceber o mundo. Para ele é mais importante o conteúdo, muitas vezes interligado na trama, do que a palavra com a qual a vida é recriada. Construtor de personagens que ficam para sempre. Faz pensar e ao mesmo tempo rir sua mensagem de esperança, muitas vezes de fraternidade, vozes cheias de liberdade na escrita irreverente.” 

JORGE ARAÚJO 

Nascido em Baixa Grande, radicado há anos no Sul da Bahia. Poeta, cronista, contista, autor de livros infantis, crítico literário, dramaturgo e ensaísta. Professor de literatura aposentado pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Tornou-se Doutor em Letras com a tese Perfil do leitor colonial, em 1988, sendo esse título concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conquistou duas vezes o Prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da Bahia. Um dos vencedores do Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias. Erudição e sensibilidade unem-se com lucidez em seus ensaios investigativos, marcados por conceitos de alto nível e raciocínios inteligentes.” 

JORGE MEDAUAR 

“Também foi poeta, esse contista de Água Preta, de estilo simples, cheio de humanidade ingênua em suas histórias que prendem, desenhadas como flagrantes da vida diária na cidade pequena, recheada dos costumes de seu tempo. Marcada com a boa prosa gostosa de escutar, ler no bilhete, carta, notícia do jornal que vinha de Ilhéus no trem. Aparentemente fácil, na serenidade de seu discurso há muita observação da vida documentada com sensibilidade.” 

SONIA COUTINHO 

“Nascida em Itabuna, cedo mudou-se com a família para Salvador. Viveu no Rio de Janeiro onde exerceu o jornalismo e a tradução para sobreviver. Na traiçoeira invenção da vida, os fados não lhe permitiram que desfrutasse do lado azul da canção. Ficcionista de solidão em família, de atritos e conflitos, pungentes, doloridos. Um momento singular da atual ficção brasileira, ao nível de Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles.” 

SOSÍGENES COSTA 

“Poeta nascido em Belmonte, que lhe inspirou Iararana, seu mito nativista.  Quando viveu em Ilhéus, viu a cidade como um búfalo fosfóreo, inventou uma sereia que se despiu do mito, depois de ter lido Marx e Freud, e deu uma festa no mar. Poeta de signos irregulares, mesclado nas vertentes barroca, parnasiana, simbolista, modernista e popular. De tardia repercussão nas letras brasileiras. Desenhou a flor do cacau toda orvalhada e moça. Mostrou que na lira não habitam somente versos malditos, também existem as flores, os pavões de audição colorida, fazendo a vida rútila e festiva.” 

TELMO PADILHA 

“Nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, onde também nasceu Jorge Amado.  Em seu Voo Absoluto há uma difícil travessia, exposta aos olhos como impossível de aceitar. Seu discurso aprofunda-se nos temas impregnados de perda, fuga, medo, solidão e morte. Em Provação, livro póstumo, o clima lírico do eu sereno está impossibilitado de acolher a adversidade da vida armada pelo fato estúpido, inexplicável, da derradeira verdade.  A tragédia que ceifou o filho amado vem ao debate através do eu reflexivo, lamento em grito, em que a palavra aflora intensa na dor, emerge das silabas feridas na alma em delírio, do coração que sangra, e não tem cura. Um livro que merece uma edição digna de um poeta verdadeiro.” 

VALDELICE PINHEIRO 

“Outra poeta nascida em Itabuna. Seus poemas bem construídos integram-se no repertório valoroso da poesia produzida na Bahia. Atestam que, se a melhor poesia produzida no Brasil hoje está no Nordeste, como foi lembrado pelo tradutor e poeta Ivan Junqueira, acontece principalmente na Bahia. E, entre os baianos, Valdelice Soares Pinheiro tem sua voz, sua impressão digital, seu talento, sua ideia imaginada com precisão e saber, que se inscreve em patamar de afirmativo nível literário.”    


Outros autores de expressiva qualidade estão chegando para com suas criações dar andamento ao legado desse conjunto de escritores do melhor exemplo. Apesar de cometer o pecado da omissão, cito alguns deles: Antonio Junior, Renato Prata, Heloísa Prazeres, Piligra, Margarida Fahel, Marcos Luedy, Gustavo Felicíssimo, Ruy Póvoas, Heitor Brasileiro e Pawlo Cidade.  

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Romance da Terra Amarga

Cyro de Mattos




Idealizado pelo banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e o escritor Antônio Olinto, o prêmio WALMAP surgiu em 1964 e foi o mais importante concurso literário brasileiro na época, durante mais de dez anos. Revelou romancistas da grandeza de Assis Brasil com Beira Rio Beira Vida (1965), Oswaldo França Junior com Jorge, um brasileiro (1967), Ricardo Guilherme Dicke com Deus de Caim (1968), André de Figueiredo, com Labirinto (.1971), Ledo Ivo com Ninho de Cobras (1980) e outros autores capazes de abalar os rumos da ficção brasileira.

Certa vez, a comissão julgadora desse concurso concedeu Menção Honrosa ao romance Terra Amarga, do baiano José Almiro Gomes, e foi constituída de Jorge Amado, Antônio Olinto e João Guimarães Rosa. Reconhecia assim as qualidades de um romance de conteúdo social no seu conjunto de vícios e virtudes. Essa obra ficou no fundo da gaveta durante décadas e agora na sua primeira edição pede passagem para remontar as vidas sofridas de camponeses subjugados nas relações entre os que mandam fazer e os que cumprem porque não veem outra maneira de sair do impasse, que lhes nega a vida de maneira justa.

Sua história acontece na Fazenda Aurora, no município baiano de Santo Antônio de Jesus. Foca as condições miseráveis de vida no latifúndio, com quase uma centena de trabalhadores descendentes dos negros escravos. Mostra a vida numa propriedade rural extensa com suas plantações de mandioca, fumo, café, cana e o extrativismo de madeira. Tem como personagens principais Du e Noratinha, o Coronel João Vicente, proprietário do latifúndio, e o feitor Alcebíades, ambos impiedosos nas relações com os seus trabalhadores.

Além do estilo desenvolto na condução onisciente das cenas, chama a atenção na trama os intertextos usados com a reprodução das cantigas de roda, ladainhas e improvisos do folclore regional. Recurso empregado na narrativa para atenuar o ambiente desumano em que vivem criaturas marcadas para trabalhar sem volta decente, a não ser sofrer e morrer. De repente um vento alegre derrama-se com sua festiva cantoria popular do folguedo. Alivia assim o cenário cruel de uma humanidade sedenta por dias redentores, cantando e dançando como forma de resistir às dores impingidas pela terra trabalhada em regime de quase escravidão.

Quem conheceu o autor desse romance de fundo social, que viveu na cidade sul baiana de Coaraci por muitos anos, soube como ele era um homem singular. Marido cuidadoso, pai exemplar, advogado corajoso e combativo, nunca se rendendo ao Juiz de Direito de comportamento duvidoso. Era apaixonado pela poética condoreira de Castro Alves, dos versos inigualáveis de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, íntimo dos romancistas russos de cárter social.

Terra Amarga é romance que pode levar o leitor não especializado e o estudante a se familiarizar com uma série de noções importantes de sociologia literária, como grupo, socialização, relações de classe, trabalho, liberdade, opressão, personalidade, linguagem, tradição, sociedade, tensão, sobrevivência, dando uma visão global do mundo social numa zona do sertão baiano, no Brasil arcaico do século XX.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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segunda-feira, 28 de abril de 2025

 

      Naqueles tempos do holocausto

       Cyro de Mattos 

 


           Havia sido aprovado no concurso do Conservatório Nacional de Música. Sonhara muito tempo com isso.  Desejara começar a exercer a carreira de violinista na Alemanha, onde certamente desenvolveria seus pendores musicais com o instrumento que mais apreciava, melhor dizendo amava. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel.  

Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, crente na perfeição da vida quando o assunto era música. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas. No aeroporto viu o aviso na parede proibindo que judeus saíssem da Alemanha. 

 No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM RATO SUJO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo que se manifestava na vida com inteligência e trabalho. 

Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia brasileira em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Não admito tamanha covardia! Vou denunciar o caso ao Consulado do Brasil!” O grupo largou a moça contrariado, revoltado com aquele brasileiro inconveniente, um intruso na defesa de uma judia, uma criatura inferior na escala biológica das raças. 

Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil. 

O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do sentimento do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.

 Ficou sem querer acreditar quando ocorreu a Noite do Cristal, lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que fosse encontrado pela frente e que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.    

Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria descontrolada assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.    

As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em seu mito ariano com as botas de ferro de soldados impassíveis?

Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas. 

No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria querida e saudosa.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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terça-feira, 22 de abril de 2025

MÚSICA BRASIL ACIMA DE TUDO E DEUS ACIMA DE TODOS . ESTAMOS ESPERANDO VO...

O pai e o filho do pai

Cyro de Mattos

 


Já vai longe o tempo em que recebi a primeira distinção relevante no meu currículo de vida literária.  Foi em 1968, no Rio.  Tinha resolvido ir morar no Rio para seguir na metrópole minha carreira literária. Vendi meus livros de Direito do escritório de advocacia, que havia estabelecido na cidade onde nasci, já com uma clientela considerável proveniente da área trabalhista.  Como o autor não vive de literatura, para sobreviver fui trabalhar em jornal na cidade grande.

O Rio e São Paulo naquela época formavam o tambor cultural do Brasil. Quem quisesse ter repercussão na carreira literária devia migrar cedo para uma das duas metrópoles. Já repórter e redator do Diário de Notícias no Rio, ainda como um moço do interior baiano espantado com a cidade de muita gente e edifícios que altos sinalavam para as nuvens, sentia-me estranho aos meios e costumes da metrópole. Foi aí que tive uma boa surpresa. Conquistava em 1968 um prêmio internacional para autores de língua portuguesa. Era a primeira vez que um autor brasileiro conquistava a láurea. Não preciso dizer da alegria.

Depois que conquistei o prêmio para livros de contos e novela da Academia Brasileira de Letras, vieram outras conquistas literárias e reconhecimentos importantes, em nível nacional e internacional, permitam-me aludir sobre essas ocorrências dando-me a certeza de que estava no caminho certo.     

Fico pensando agora como reagiria meu pai quando soubesse que tinha um filho como autor de dezenas de livros pessoais publicados no Brasil e exterior. Meu pai era um homem iletrado, aprendera a ler e a escrever por esforço próprio. Tudo que fez na vida foi com trabalho, esforço e economia para que os filhos fossem gente: o mais velho se tornasse um médico respeitável, o mais novo tivesse a carreira de advogado nas pegadas de um profissional competente. O irmão mais velho tornou-se um médico valoroso,  cirurgião elogiado durante décadas de dedicação e amor à Medicina. O filho caçula fora uma decepção para o pai, trocara o certo pelo duvidoso. 

O pai disse:

- Você pretende viver nas nuvens, seguindo uma profissão que não existe, não bota comida no prato, aqui na cidade ninguém dá importância a quem vive de escrever livros.  – De rosto triste, na expressão inconformada, concluiu: - Esse negócio de ser escritor só serve pra quem não tem juízo.

Observei:

- Meu pai é o que gosto, ser escritor não dá dinheiro nem conceito, reconheço, mas vou seguir o meu destino. 

Perguntei-lhe se ele já havia ouvido falar no famoso romancista Jorge Amado, era uma referência para quem quisesse seguir a carreira de escritor.

Respondeu que já ouvira falar nesse escritor famoso, mas era um caso raro, acrescentando que devemos seguir a regra e não a exceção, onde para se alcançar as metas importantes tudo é mais difícil.  

O pai não podia pensar diferente, com o saber que aprendera das lições tiradas na escola da vida, queria o melhor para mim.

Certamente hoje, se estivesse aqui comigo, ficaria calado, entre estranho e assustado.

Seria bom, agradável, se ele dissesse:

- Filho eu não sabia que o tempo estava preparando uma boa surpresa pra mim e pra sua mãe.

 O tempo, esse avantajado cavaleiro soberano. Sabe das coisas, conhece os caminhos, dá e toma, tudo bebe e lambe.

Antes de se recolher para se reconfortar no sono, depois de mais um dia de trabalho, gostaria que o meu pai dissesse com a voz calma:  

       - Filho, você está pronto, é um escritor de verdade. 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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sexta-feira, 18 de abril de 2025


           Quatro Poemas Cristãos

Cyro de Mattos

         



           Perdão

        

          Na memória dolorida

          A sensação da procissão.

                             Perdoai, Senhor, por piedade,

                             Perdoai, Senhor, tanta maldade,

                             Antes morrer, antes morrer

                             Do que Vos ofender...

                           

                             Pelas pedras do caminho

                             O roxo me alcança nesses ais.                          

                            Toca no meu peito o vosso sofrimento.                   

                        Fadiga, sede, fome, cuspe, espinho,

                        Sangue, chicotada, prego, riso,

                        Madeira feita cruz, santo Pai

                        Perdoai os pecados meus.


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Caminhos de Deus

 

Amor sem fim deu,  

Perdão a quem ofendeu,  

Riu, escarneceu. 

 

Também fez ao cego

Que descobrisse a manhã

De novo nascendo.  

 

A morte venceu

Em cada flor que fazia

Pra mostrar o céu.  

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O ato como fardo 

 

Pilatos lavou as mãos,

Entregou Jesus ao povo

Para não perder o poder.

A cena doída não se foi. 

Até quando, ó Pai,

Nós iremos repeti-la?

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Jesuscristinho

       Para Manuel Bandeira

 

A Virgem Maria

Sentia como doía

O destino humano

Do filho de Deus.

 

Quando for um homem

Com o nome de Jesus

De tanto nos amar

Irá morrer na cruz

 

Louvemos baixinho

O nosso reizinho

Antes que vá morar

Na casa de Deus.

 

Cheio de sentimento,

Perdão em dó e amor,

Enquanto ele dorme

Feito um cordeirinho.

 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.


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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Procissão da Sexta-Feira Santa

Cyro de Mattos




               Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe  soubesse. Ela dizia que as  pessoas   deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à ; morte do Cristo. O jejum era só naquela semana,  passava logo, ninguém ia morrer por isso.

            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe  falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca  na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo  na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas  do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara  pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus &nbs p;na cruz  de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus,  muita gente chorava.
            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face  para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora o  cinema quase vinha abaixo com as vaias da platéia.
           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas  principais da cidade sob os cantos que falavam de pesares  e perdão:



                             Perdoai,  Senhor, por piedade,
                             Perdoai,  senhor, tanta maldade,
                             Antes morrer, antes morrer
                             Do que  Vos ofender...



            A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto,  as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da  graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido  roxo,  que tocava  os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia  o rosto do Cristo no sudário..
            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.
                             
                           
                          Pai salvador,
                          Misericordioso,
                         Toca no meu peito
                        O sofrimento Teu.                  
                        Fadiga, sede,  fome.
                       Cuspe, espinho, sangue,.                   
                       Chicotada,  prego,
                       Madeira feita cruz,
                       Meu  Pai, perdoai
                       Os pecados meus.


             Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar  quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou  e pediu  que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata Detinha, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As  botinas novas apertavam  os meus  pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “ Os calos estão doendo muito, não agüento mais”,  disse  aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
                 Preferi não obedecer minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar  dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações  e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse des maiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa, escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.
              Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro. 

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.


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