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sábado, 20 de janeiro de 2024

A Mudança do Mau-Caráter

Cyro de Mattos


 Nunca suportou
os ganhos do vizinho
na vida

          Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou.  Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia-se, o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

          O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados.  Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

          Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes.  Precocemente envelhecido como a mulher, sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável.  Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

          Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa.  Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso saudável, de bem-estar com a vida.

          Até quando suportar aquela fronte tocada de orgulho? Fraturas e feridas, riscava.    

          Daí para a incompreensão da mulher, houve repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio, em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento. 

           Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele. 

          As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

          Mostrava-se arrasado. A última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados.                           

          Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum ausente, traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes o desconforto.   


Cyro de Mattos - Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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