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domingo, 19 de fevereiro de 2023

Desencanto em Lima Barreto 

Cyro de Mattos

  


                          

               Viera ao mundo numa data aziaga para os espíritos supersticiosos: treze de maio, uma sexta-feira, dia de Nossa Senhora dos Mártires. E o que se chama destino trama contra ele cedo, começando com a perda da mãe, seis anos depois de ter nascido. Parte do espírito rebelde e a cor de mulato têm raízes na figura paterna, o tipógrafo João Henriques, filho de uma antiga escrava com um madeireiro português. O pai não lhe reconhece a paternidade.

             A cor de mulato instala-se na alma como algo que atormenta, causando-lhe obstáculos sucessivos. Estimulado pelo meio social vai acompanhá-lo até o fim da vida, gerando dramas marcados por uma sociedade opressiva, que ele pretende vingar-se. A alma de inconformado vai combater uma sociedade anacrônica, expressando-se perante o meio cultural através do que ele rotula de estética da sinceridade. Nesse particular interage numa literatura visceralmente voltada para as camadas proscritas da população, no texto destituído de linguagem rebuscada, submissa a modelos europeus, postura que era comum entre nossos escritores quando abordavam a realidade brasileira no fim do século dezenove e início do vinte.

             A imagem reinante dessa época era a de uma fragilidade no estado de espírito de nossos escritores. Nossa literatura possuía um corpo eclético formado pelo cruzamento e entrecruzamento de várias correntes estéticas, tendências ou estilos. Vivia-se no Rio com o sonho da França. E a Literatura, forma ampla de conhecimento da vida, era concebida por alguns como o sorriso da sociedade. Ninguém podia ser chamado de culto se não falasse nos heróis gregos e no cerco de Tróia. Como parte do contexto que primava pelo elogio à cultura de fora, com os valores formais da arte tradicional sem conteúdo nacional, aparece uma figura peculiar de escritor, a do boêmio, tipo pitoresco que se dava ao prazer de contar anedotas, fazer trocadilhos, nas portas de café e confeitarias. Nosso Parnasianismo, que em geral praticava a arte pela arte e a precisão vocabular (mot juste), quanto à sonoridade e ao senso colorido, embriagava muitos poetas.

         A sedução de Paris, as agremiações literárias, o hábito dos saraus artísticos, a mania de conferências e o uso das letras na escrita sonora, em seu poder verbal pobre de significado e percepção do drama humano, que teve em Coelho Neto um expoente, testemunham um Brasil literário vivendo um clima de ócio cultural e inutilidade criativa.

O criador de Policarpo Quaresma emerge dessa ambiência cultural moldada em atitudes importadas da Europa, alma inconformada que pretendia se tornar referencial oposto à estagnação que tomava conta de nossas letras de fim de século dezenove e início do vinte. Uma voz indignada, em sua revolta feita de humanismo social e humor cotidiano, vinha para contradizer como legítima prata da casa as cenas vazias de autênticos protagonistas nacionais, as quais se desenvolviam com as normas instituídas pelo ouropel alheio.

Reclamava o Brasil dentro do Brasil, querendo ter o direito de se fazer ouvir aos que não cuidavam de se interessar pelas coisas verdadeiras de nossa realidade. Munido de um estilo liberto do complexo colonial, brasileiro na maneira de ver, sentir e narrar as coisas nossas tomadas emprestadas ao cotidiano, Lima Barreto vai buscar seus personagens nos subúrbios do Rio de Janeiro, lá onde gravitam funcionários públicos, pequenos negociantes, médicos com pequena clínica, tenentes de diferentes milícias e seresteiros.

É o precursor do romance social brasileiro. Foi uma de minhas leituras na adolescência. Integra um de meus ensaios reunidos no livro A Leitura Lembrada, inédito,  sobre contistas, romancistas e poetas importantes da  literatura nacional.

 

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Publicado em Portugal, Itália, Espanha, Alemanha, França, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e de Ilhéus. Comendador da Ordem do Mérito do Governo da Bahia


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