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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

CÂNTICO DO CALVÁRIO – Fagundes Varela

 


À memória de meu filho, morto a 11 de dezembro de 1863.


 Eras na vida a pomba predileta 
 Que sobre um mar de angústias conduzia 
 O ramo da esperança. — Eras a estrela 
 Que entre as névoas do inverno cintilava 
 Apontando o caminho ao pegureiro. 
 Eras a messe de um dourado estio. 
 Eras o idílio de um amor sublime. 
 Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, 
 O porvir de teu pai! — Ah! no entanto, 
 Pomba, — varou-te a flecha do destino! 
 Astro, — engoliu-te o temporal do norte! 
 Teto, caíste! — Crença, já não vives! 

 Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, 
 Legado acerbo da ventura extinta, 
 Dúbios archotes que a tremer clareiam 
 A lousa fria de um sonhar que é morto! 
 Correi! Um dia vos verei mais belas 
 Que os diamantes de Ofir e de Golgonda 
 Fulgurar na coroa de martírios 
 Que me circunda a fronte cismadora! 
 São mortos para mim da noite os fachos, 
 Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas, 
 E à vossa luz caminharei nos ermos! 
 Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa, 
 Brando orvalho do céu! — Sede benditas! 
 Oh! filho de minh’alma! Última rosa 
 Que neste solo ingrato vicejava! 
 Minha esperança amargamente doce! 
 Quando as garças vierem do ocidente 
 Buscando um novo clima onde pousarem, 
 Não mais te embalarei sobre os joelhos, 
 Nem de teus olhos no cerúleo brilho 
 Acharei um consolo a meus tormentos! 
 Não mais invocarei a musa errante 
 Nesses retiros onde cada folha 
 Era um polido espelho de esmeralda 
 Que refletia os fugitivos quadros 
 Dos suspirados tempos que se foram! 
 Não mais perdido em vaporosas cismas 
 Escutarei ao pôr do sol, nas serras, 
 Vibrar a trompa sonorosa e leda 
 Do caçador que aos lares se recolhe! 

 Não mais! A areia tem corrido, e o livro 
 De minha infanda história está completo! 
 Pouco tenho de ansiar! Um passo ainda 
 E o fruto de meus dias, negro, podre, 
 Do galho eivado rolará por terra! 
 Ainda um treno, e o vendaval sem freio 
 Ao soprar quebrará a última fibra 
 Da lira infausta que nas mãos sustento! 
 Tornei-me o eco das tristezas todas 
 Que entre os homens achei! O lago escuro 
 Onde ao clarão dos fogos da tormenta 
 Miram-se as larvas fúnebres do estrago! 
 Por toda a parte em que arrastei meu manto 
 Deixei um traço fundo de agonias! ... 

 Oh! quantas horas não gastei, sentado 
 Sobre as costas bravias do Oceano, 
 Esperando que a vida se esvaísse 
 Como um floco de espuma, ou como o friso 
 Que deixa n’água o lenho do barqueiro! 
 Quantos momentos de loucura e febre 
 Não consumi perdido nos desertos, 
 Escutando os rumores das florestas, 
 E procurando nessas vozes torvas 
 Distinguir o meu cântico de morte! 
 Quantas noites de angústias e delírios 
 Não velei, entre as sombras espreitando 
 A passagem veloz do gênio horrendo 
 Que o mundo abate ao galopar infrene 
 Do selvagem corcel? ... E tudo embalde! 
 A vida parecia ardente e douda 
 Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem, 
 Tão puro ainda, ainda n’alvorada, 
 Ave banhada em mares de esperança, 
 Rosa em botão, crisálida entre luzes, 
 Foste o escolhido na tremenda ceifa! 

 Ah! quando a vez primeira em meus cabelos 
 Senti bater teu hálito suave; 
 Quando em meus braços te cerrei, ouvindo 
 Pulsar-te o coração divino ainda; 
 Quando fitei teus olhos sossegados, 
 Abismos de inocência e de candura, 
 E baixo e a medo murmurei: meu filho! 
 Meu filho! frase imensa, inexplicável, 
 Grata como o chorar de Madalena 
 Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras 
 Senti rugir o vento incendiado 
 Desse amor infinito que eterniza 
 O consórcio dos orbes que se enredam 
 Dos mistérios do ser na teia augusta! 
 Que prende o céu à terra e a terra aos anjos! 
 Que se expande em torrentes inefáveis 
 Do seio imaculado de Maria! 
 Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! 
 E de meu erro a punição cruenta 
 Na mesma glória que elevou-me aos astros, 
 Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

 O som da orquestra, o retumbar dos bronzes, 
 A voz mentida de rafeiros bardos, 
 Torpe alegria que circunda os berços 
 Quando a opulência doura-lhes as bordas, 
 Não te saudaram ao sorrir primeiro, 
 Clícia mimosa rebentada à sombra! 
 Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te, 
 Tiveste mais que os príncipes da terra! 
 Templos, altares de afeição sem termos! 
 Mundos de sentimento e de magia! 
 Cantos ditados pelo próprio Deus! 
 Oh! quantos reis que a humanidade aviltam, 
 E o gênio esmagam dos soberbos tronos, 
 Trocariam a púrpura romana 
 Por um verso, uma nota, um som apenas 
 Dos fecundos poemas que inspiraste! 

 Que belos sonhos! Que ilusões benditas! 
 Do cantor infeliz lançaste à vida, 
 Arco-íris de amor! Luz da aliança, 
 Calma e fulgente em meio da tormenta! 
 Do exílio escuro a cítara chorosa 
 Surgiu de novo e às virações errantes 
 Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo 
 Ao pranto sucedeu. As férreas horas 
 Em desejos alados se mudaram. 
 Noites fugiam, madrugadas vinham, 
 Mas sepultado num prazer profundo 
 Não te deixava o berço descuidoso, 
 Nem de teu rosto meu olhar tirava, 
 Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

 Como eras lindo! Nas rosadas faces 
 Tinhas ainda o tépido vestígio 
 Dos beijos divinais, — nos olhos langues 
 Brilhava o brando raio que acendera 
 A bênção do Senhor quando o deixaste! 
 Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, 
 Filhos do éter e da luz, voavam, 
 Riam-se alegres, das caçoilas níveas 
 Celeste aroma te vertendo ao corpo! 
 E eu dizia comigo: — teu destino 
 Será mais belo que o cantar das fadas 
 Que dançam no arrebol, — mais triunfante 
 Que o sol nascente derribando ao nada 
 Muralhas de negrume! ... Irás tão alto 
 Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

 Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se, 
 E tantas glórias, tão risonhos planos 
 Desfizeram-se em pó! O gênio escuro 
 Abrasou com seu facho ensanguentado 
 Meus soberbos castelos. A desgraça 
 Sentou-se em meu solar, e a soberana 
 Dos sinistros impérios de além-mundo 
 Com seu dedo real selou-te a fronte! 
 Inda te vejo pelas noites minhas, 
 Em meus dias sem luz vejo-te ainda, 
 Creio-te vivo, e morto te pranteio! ... 

 Ouço o tanger monótono dos sinos, 
 E cada vibração contar parece 
 As ilusões que murcham-se contigo! 
 Escuto em meio de confusas vozes, 
 Cheias de frases pueris, estultas, 
 O linho mortuário que retalham 
 Para envolver teu corpo! Vejo esparsas 
 Saudades e perpétuas, — sinto o aroma 
 Do incenso das igrejas, — ouço os cantos 
 Dos ministros de Deus que me repetem 
 Que não és mais da terra!... E choro embalde. 

 Mas não! Tu dormes no infinito seio 
 Do Criador dos seres! Tu me falas 
 Na voz dos ventos, no chorar das aves, 
 Talvez das ondas no respiro flébil! 
 Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, 
 No vulto solitário de uma estrela, 
 E são teus raios que meu estro aquecem! 
 Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! 
 Brilha e fulgura no azulado manto, 
 Mas não te arrojes, lágrima da noite, 
 Nas ondas nebulosas do ocidente! 
 Brilha e fulgura! Quando a morte fria 
 Sobre mim sacudir o pó das asas, 
 Escada de Jacó serão teus raios 
 Por onde asinha subirá minh’alma.

(Fonte: ABL)

......


Fagundes Varela (Luís Nicolau Fagundes Varela), poeta, nasceu em São João Marcos, atualmente Rio Claro, RJ, em 17 de agosto de 1841, e faleceu em Niterói, RJ, em 17 de fevereiro de 1875. É o patrono da cadeira n. 11, por escolha do fundador Lúcio de Mendonça. Era filho do Dr. Emiliano Fagundes Varela e de Emília de Andrade, ambos de famílias fluminenses bem situadas. Passou a infância na fazenda natal e na vila de São João Marcos, de que o pai era juiz. Depois, residiu em vários locais. Primeiro em Catalão Goiás, para onde o magistrado fora transferido em 1851 e onde Fagundes Varela teria conhecido o juiz municipal Bernardo Guimarães. De volta à terra natal, residiu em Angra dos Reis e Petrópolis, onde fez os estudos do primário e secundário. Em 1859, foi terminar os preparatórios em São Paulo. Só em 1862 matricula-se na Faculdade de Direito, que nunca terminou, preferindo a literatura e dissipando-se na boêmia. Em 1861, publicara o primeiro livro de poesias, Noturnas.


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