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sábado, 18 de janeiro de 2020

O CURANDEIRO – Catulo da Paixão Cearense


           Antônio Cobra era, por esse tempo, o mais reputado curandeiro do sertão. Às vezes, mesmo de longe, se lhe era impossível vir à casa da vítima, de longe mesmo, com os seus processos cabalísticos, efetuava a maravilha da cura. Antônio Cobra, em se tratando do tóxico segregado pelas suas homônimas, era um semideus daquelas paragens. Quem deixaria de o respeitar e admirar, se ele representava para aqueles homens rudes o eminente Pasteur, imortalizado pelos seus trabalhos sobre a profilaxia da raiva e de outras Moléstias contagiosas?! Ninguém; e por uma simplíssima razão: - as provas irrefutáveis que a todo momento via com seus olhos. Milagre, Magia, feitiçaria? O caboclo, que já orçava pelos noventa, era digno de acurado estudo dos homens de ciência.

            O coronel Chico Francisco de São Francisco era o proprietário de uma Fazenda de gado do sertão da minha Terra natal. Homem rico, laborioso e fino cavalheiro, fazia-se estimado por todos os corações que auscultassem o de sua alma, sempre desejosa de fazer bem. Sua mulher, dona Chica Francisca de São Francisco, era o reflexo da individualidade moral de seu esposo. O coronel era um homem de uns setenta invernos primaveris e dona Francisca, de pouco menos. Tinham apenas uma filha de 15 anos, dona Violeta, tão formosa e modesta, como a sua irmã floral e era, por sua vez, o reflexo de sua progenitora. Dona Violeta era a estrela polar do coração daqueles dois velhos felizes.

            A pouca distância da Fazenda do Coronel, havia outra, cujo dono, o Capitão Vieira Martins, seu amigo e compadre, não lhe era inferior na riqueza nem na bondade. Casado também e quase da mesma idade do seu velho amigo, tinha um filho já formado em medicina, o qual chegara há um mês do Rio de Janeiro. O Dr. Bento Luiz, o filho do senhor Martins, vinha realizar um contrato feito entre os dois fazendeiros, no dia do seu natal. E qual fora este contrato? O doutor Bento faria os seus estudos de humanidades, completaria o seu curso acadêmico na Capital e voltaria ao sertão, para que se efetuasse o ideal dos dois compadres e de suas esposas, comadres também. Quando o jovem futuro doutor saiu do sertão, já não levava o coração, que pertencia a sua futura consorte - dona Violeta, que o adorava também com toda a formosura de sua alma.

            Dentro de um mês, o casamento seria celebrado pelo capelão da Fazenda do Coronel, e     segundo era corrente, com extraordinários deslumbramentos, para que permanecesse na memória de todos os coevos e, depois, na tradição, a majestade daquela festa nupcial. Neste comenos, deu-se uma catástrofe desoladora.

            Um dia, pela manhã, dona Violeta borboleteava pelos matos, a colher flores silvestres, quando foi surpreendida pela presença de uma terribilíssima Salamanta, que, avistando-a primeiro, formou-lhe o bote e cravou-lhe os dentes na perna direita. Dona violeta esvaia-se em sangue, quando, por felicidade, passava pela estrada um boiadeiro, recolhendo ao curral um boi tresmalhado. É desnecessário descrever ao leitor a revolução nas duas Fazendas com a notícia daquela desgraça. Prefiro deixar a sua imaginação, que, por menos fértil que seja, bem pode com vantagem dispensar-me desse trabalho.

            Que dizer da amargura do coronel, da aflição de sua esposa, do profundo abalo do outro casal e do desespero do noivo, o doutor Bento Luiz?! Quem, mesmo sem ser pai nem noivo, não sofreria com aqueles pais e aquele noivo, e, finalmente, com todos os corações que extremavam D. Violeta, diante daquela perspectiva funérea? Dona Violeta, a violeta de todas aquelas almas, estava com o pé no cairel do abismo da morte!!!

            O jovem recém formado , médico, e,  por isso, conhecendo o perigo como ninguém e confiado na terapêutica proveta de do seu colega o Dr. Fortunato Bocayuva, o velho clínico daquelas cercanias, sem perder um segundo, montou no seu Faísca, o cavalo mais corredor de todos as duas Fazendas, e rumou para a casa do antigo esculápio.

            Os episódios desta narrativa devem ser rápidos como os de uma representação na tela mágica do cinematógrafo. Poupemos a susceptibilidade do coração do leitor. Deixemos os pormenores e, assim, fitemos a estrada real e veremos dois cavalos fumaçando a todo galope, em direção da casa do Coronel. O Dr. Bento, galopando vertiginosamente, e mais e mais esporeando o seu Pégaso, esquecia-se, talvez, de que o seu velho colega, septuagenário como era, já não podia perpetrar aquelas bravuras. Mas o amor é violento nas ocasiões supremas da desesperação.

            Passemos, eu e o leitor, o rapidíssimo volver de olhos na chegada dos dois galopadores, na ansiedade de todos do lugar, no rebuliço labiríntico da casa, na amargura dos dois casais, na angústia do noivo, e no exame da enferma, feito pelo sapientíssimo Dr. Fortunato Bocayuva.

            Concluído o exame e receitados os medicamentos para o veneno da mordidela ofídica, retirou-se o Dr. Fortunato Bocayuva, comunicando ao seu colega que o caso era sério, mas muito longe de ser desesperador.

            A ciência já era possuidora de armas possantes para destruir a virulência do tóxico das salamantas e outros que tais. Que ficasse, pois, descansado e que no outro dia voltaria, pois não julgava que sobreviesse algum acidente que obrigasse a um chamado, antes do dia seguinte.

            Previno ao leitor, mais esta vez, que galopo nesta história, sem fazer caso das suas minudências, que, talvez, fosse o mais interessante. Além disso, insisto: - nunca poderia ser um conteur, porque fujo de toda a descrição, em que um sofrimento é o protagonista. continuemos, pois, a fazer vista grossa às particularidades que esta narrativa devia conter, se fosse traçada por pena de mestre.

            Conquanto os medicamentos do Dr. Bocayuva lhe houvessem atenuado as dores, o estado geral da enferma agravou-se ao anoitecer. Novo chamado ao Dr. Fortunato; novo exame; novas prescrições, nova despedida, e, infelizmente, (o que é pior!...) sem aquela frase: - “... longe de ser desesperador”.

            Quem fosse do sertão, já perceberia, àquela hora, que a natureza tinha ânsias de amanhecer. Eram três e meia da madrugada. As prescrições do esculápio tinham sido rigorosamente, e, mais, religiosamente observadas. Mas ... nada de melhoras! Bem ao contrário!....

            Novo chamado às 6 horas da manhã. Nova vinda. Novo exame.  Novas cerimônias, novas torturas de saber o estado da enferma e... (maldição!!...) o desengano!

            O Dr. Fortunato acabava de confessar, pesarosamente, Quem é a sua ciência tinha embotado as armas nas arestas impenetráveis do grande mal! Nada mais tinha a fazer! Dito isso, abraçou o seu jovem colega, montou na eguinha e com um - Paciência, meu amigo – volatizou-se na recurva do caminho, aureolado por uma tremenda nuvem de poeira.

            O Dr. Bento Luís vagava pelo terreiro, como um alucinado, quando foi solicitado para dar uma palavra à tia Sant’Anna, uma preta centenária, que tinha sido a sua ama de leite, e que era chamada a Vovó de todo aquele sertão. No auge do seu desvario, relutou; mas, assediado pelos rogos de seu pai, consentiu.

            Tia Sant’Anna, que acabava de vir do quarto da infeliz D. Violeta, varou a porteira e atirou-se súplice aos pés do moço, pedindo-lhe que mandasse chamar, sem perda de um minuto, o velho Totonho, a única pessoa que podia arrancar das gadanhas da morte aquela adorada criatura.

            A resposta foi um grito doloroso, que repercutiu pelas bocainas daquelas matarias enflorescidas. A tia, porém, não desanimou. Atirou-se de novo aos pés do seu filho de leite, chorando como uma criança de três anos. Ouvindo todo aquele berreiro, acudiram todos, na previsão da morte da filha do coronel.

            Pedidos, rogos, súplicas, implorações dos pais, dos futuros sogros, do capelão e, finalmente, de todos, fizeram com que ele consentisse no pedido da Tia Sant’Anna, dizendo, porém, que, além daquilo ser uma comédia, e, no seu caso – um desrespeito à ciência, retirava-se da Fazenda, indo para longe, para não presenciar aquela pataquada e esperar o golpe da fatalidade sobre o seu coração de amante e desgraçado.

            Meia hora depois da retirada do Dr. Bento Luiz para a outra Fazenda, chegava o portador do chamado ao Antônio Cobra, trazendo o paletó do curador, o qual, segundo as suas ordens infalíveis e imperiosas, tinha de ser, imediatamente envolvido em toda a perna, vitimada pela serpente. E, ao encaminhar-se para o quarto da enferma, ia afirmando a todos que o curandeiro lhe havia assegurado que as dores teriam de cessar dentro de poucos minutos, depois do que ordenara que fizessem com o paletó, enquanto ele, curandeiro, se ia preparar e se pôr em caminho da casa da sua nova cliente.

            E assim sucedeu. Em menos de vinte minutos, o alívio era considerável. Tinham desaparecido as dores cruciantes. A doente já sentia menos à adustão do esôfago e as dores do epigástrio, quando, pela tarde, chegou o Antônio Cobra na Fazenda do Coronel, tranquilo e calmo, trazendo sobre os ombros um grande saco, onde se aninhava misteriosamente uma multidão de cobras de várias  espécies. Antes de entrar no casarão , pousou o saco no empedrado do terreiro, descobriu-se, fez uma pequena prece a Virgem Maria, e foi tirando de dentro, primeiro - uma Jararacuçu , depois uma Cobra-Rainha, uma Malha de Fogo, uma Cobra de Oco, uma Corre-Campo, uma Surucucutinga e, por último, uma Salamanta.

            Depois de trocar língua com elas, dizendo lhes qualquer coisa apocalíptica, ordenou-lhes que se retirassem para o mato, o que todas fizeram, sem a menor vacilação. Uma para aqui; outra para ali; outra para lá; outra para acolá, cada uma tomava a direção que o curador lhe determinava.

            Daí a poucos momentos, saiu do matagal a primeira das que soltou. Vinha só. E ele, persignando-se, dizia baixinho: não é! Veio a 2ª, a 3ª e as outras, até que apareceu a Salamanta, acompanhada de outra salamanta.

            Então o curador, voltando-se para a multidão que presenciava aquele espetáculo, disse, vitoriosamente “Foi esta!”

            Mas, quando alguns homens, novos no sertão, levantaram os seus cacetes de Massaranduba para matar o horrendo réptil, Antônio Cobra, solenemente, gritou que, se o fizessem, com um pequeno gesto enfureceriam  todas aquelas inocentes criminosas, não se responsabilizando pela morte da filha do bravo Coronel Chico Francisco de S. Francisco e pelo resultado daquela imprudência.

            Obedecido, e pronunciado o nome de cada uma, ia ordenando o que, uma por uma, fossem as serpentes entrando no saco, que abria com as suas mãos. Todas entraram, ficando apenas a nova Salamanta, a ofensora de D. Violeta, esperando as ordens do curador.

            Antônio Cobra, penetrando no aposento da enferma por uma porta que dava para o terreiro, retirou o paletó da ferida, sobre ela verteu um líquido verdoso que trazia num frasquinho, rezou, depois fez a doente jurar que não mataria nem consentiria que outra pessoa matasse uma cobra, fosse qual fosse. Por fim, persignando-se outra vez, saiu do quarto, atravessou o terreiro, de extremo a extremo, proferindo, a todos que lhe perguntavam pelo estado da enferma, esta frase redentora: “Está salva “.

            E de fato. D. Violeta estava salva!

            A tarde caminhava com pressa de quem se quer ir embora.

            Como já havia partido um portador para comunicar ao Dr. Bento Luiz aquela notícia imprevista e decisiva, pois durante todo o dia não tinham cessado as viagens de vai e vem para levar-lhe novas de D. Violeta,  (naturalmente, como esperava o doutor, - a do seu falecimento), - naquele momento, no limiar da porteira da fazenda, encontraram-se os dois: - o jovem clínico , que vinha açodado, na impaciência de ver a realidade, - e Antônio Cobra, o Pasteur do sertão. O curandeiro, com o saco cheio de terríveis répteis sobre os ombros possantes, levava enrolada no pescoço a nova Salamanta, que, sem a sua terapêutica sibilina, teria vitimado, fatalmente, aquele anjo de candura.

            Agora é que eu juro ao leitor que nunca me afoitaria a descrever esta cena, porque seria debalde. Duas palavras apenas.

            Quando se enfrentaram os dois, lado a lado, ao transporem a primeira porteira da Fazenda, Antônio Cobra, o Hipócrates da natureza, tirou, respeitosamente, o seu chapéu encourado e, com a serpente anelada em seu pescoço, seguiu em caminho da sua guarapeira.

            O doutor Bento Luiz empalideceu e, não tendo ânimo de corresponder àquele cumprimento, tocou de leve com o chicote na anca do seu cavalo, prosseguindo, nervoso, pela ansiedade de ver o seu arcanjo, a sua Violeta reflorescida e pelo prenúncio da tempestade, que ia desabar.

            De há muito que a tarde plumbeava-se, na iminência do aguaceiro. A poucos metros do pátio da Fazenda, estrondou um furioso trovão e uma salamanta esbraseada, subindo do veludo de um cumulus, atirou-se nervosa pela vastidão do espaço, como se tivesse perdido o néctar precioso da sua crueldade, o veneno matador.

            O doutor Bento Luiz, porque trazia impressas na retina a imagem das duas serpentes: - a natural, que  o curador levava enrodilhada em seu pescoço, e a celeste, que acabava de riscar a nuvem do céu, - fitou a serpente de ouro que se quedava imóvel e inofensiva em seu anel simbólico, e, com um sorriso de descrença, galopou, em caminho do santuário dos seus amores.

            Pouco depois, surgia à noite, como se fosse um dilúvio de cobras pretas, se destorcendo do pelo espaço afora e envenenando, de negro, os últimos soluços da agonia luminar!...


(POEMAS BRAVIOS)  
Catulo da Paixão Cearense

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