3 de dezembro de 2019
São Francisco Xavier – Manuel Henriques, (séc. XVI) – Sé
Nova, Coimbra
Abrasado pelo amor a Deus, Francisco Xavier inflamou os
lugares por ele evangelizados, com o fogo do amor divino e o brilho de seus
milagres. Sua festividade é celebrada pela Igreja no dia 3 de dezembro.
Plinio Maria Solimeo
Para
Santo Inácio de Loyola não havia dúvida. O Papa, para atender ao Rei João III
de Portugal, estava pedindo-lhe membros de sua recém-fundada Companhia para
evangelizar os domínios portugueses de ultramar. Como Francisco Xavier era o
único de seus discípulos disponível no momento para acompanhar Simão Rodríguez,
teria que ir. No entanto, dos seus primeiros filhos espirituais, Xavier era o
predileto, aquele que planejara ter consigo como conselheiro e provável
sucessor. Mas Inácio de Loyola havia escolhido como lema de sua milícia Ad
Majorem Dei Gloriam (Tudo para a maior glória de Deus). Se bem que tivesse
sentimentos muito profundos, não era um sentimental. Chamou logo Francisco.
Sempre pronto a obedecer, o futuro Apóstolo das Índias exclamou: “Pues!
Heme aqui!” (Estou pronto! Vamos!).
Braço de prata com relíquia do Santo
No dia 16
de março de 1540, provido dos títulos de Núncio Papal e Embaixador de Portugal
para os países do Oriente, Francisco Xavier foi despedir-se de seu pai
espiritual. Santo Inácio, pondo-lhe as mãos sobre os ombros, percebeu que a
batina era muito rala. “Como, meu caro Francisco! Ides cruzar as neves dos
Alpes com roupa tão leve?” O discípulo sorriu timidamente. “Depressa,
desvestindo sua própria batina, o Fundador da Companhia de Jesus tirou uma
veste de flanela que estava usando, e fê-la vestir em Xavier. Era como se, com
essa parte de sua vestimenta, desse uma parte de si mesmo ao filho que partia”.(1) “Ide:
acendei e inflamai todo o mundo”, foram as últimas palavras do antigo
capitão de Pamplona ao ex-mestre do Colégio de Beauvais.
Essas
palavras tornaram-se proféticas, pois o que esse hidalgo espanhol fez
o resto de sua vida não foi senão inflamar tudo com o ardente fogo de seu amor
de Deus.
Reformando a “Goa dourada, a Roma do Oriente”
Francisco
Xavier tinha 35 anos quando cruzou o oceano para chegar a Goa em 6 de maio de
1542. Essa cidade, capital das possessões portuguesas no Oriente, atraíra toda
sorte de soldados de fortuna e aventureiros, os quais, longe de sua pátria,
família, parentes e conhecidos, tinham caído numa vida licenciosa que
escandalizava não só seus correligionários, mas até os pagãos.
Dom João de
Castro, um dos maiores vice-reis das Índias, descreve assim a situação de Goa à
sua chegada: “As cobiças e os vícios têm cobrado tamanha posse e
autoridade, que nenhuma cousa já se pode fazer por feia e torpe, que dos homens
seja estranha”.(2)
Impelido “pela necessidade de perder a vida temporal para socorrer a
espiritual de seu próximo”,(3) São Francisco Xavier atirou-se ao trabalho,
começando pelas crianças e doentes. Aos poucos sua fama no confessionário e no
púlpito atingiu outras áreas, e gente de todas categorias passou a procurá-lo
para purificar sua alma. “Aqui em Goa eu moro no hospital, onde confesso e
dou a comunhão para os enfermos. Mesmo assim, é tão grande o número dos que vêm
pedir-me para ouvir confissões que, se eu estivesse em dez lugares ao mesmo
tempo, não teria falta de penitentes”,(4) escreveu ele a Santo Inácio apenas um
mês depois de sua chegada.
Goa, a “dourada” ou a “Roma do Oriente”, era uma cidade
cosmopolita e tinha atraído gente de todas as partes do mundo. São Francisco
Xavier viu a necessidade de criar uma escola de nível médio para ajudar a
evangelização. Menos de um ano depois de sua chegada, tinha já fundado o Colégio
da Santa Fé. Sua finalidade, como ele explica, era “para que os
nativos destas terras e os de diferentes nações e raças possam ser instruídos
na fé. E para que, quando tiverem sido bem instruídos, sejam enviados às suas
pátrias, de modo que ganhem fruto com o ensinamento que receberam”.(5)
A história do Cristianismo no Japão inicia-se com a chegada
de S. Francisco Xavier e seus companheiros. Depois vieram as perseguições e os
martírios.
Os “filhos de São Francisco Xavier”
Sua presença era requisitada também em outras partes: “Num
reino longe daqui (Travancore, sudoeste da Índia), Deus moveu muitas
pessoas a se fazerem cristãs. De tal modo que, num só mês, batizei mais de dez
mil, homens, mulheres e crianças”.(6) Nessa nova área ele foi recebido pelo
marajá “com honras, e tratado com gentileza”; o rei deu a ele “permissão
para pregar o Evangelho em todo seu reino, e para batizar aqueles de seus
súditos que quisessem tornar-se cristãos”.(7)
Como escreveu para os membros da Companhia, em Goa “eu tenho
estado ocupado batizando todos os infantes. […] Os mais velhos deles não me dão
paz, pedindo-me sempre para ensinar-lhes novas orações. Eles não me dão tempo
para rezar meu breviário nem para comer”.(8)
São Francisco Xavier desceu até o extremo sul da Índia para
evangelizar os Paravas, quase todos pescadores de pérolas. “Padre
Francisco fala desses Paravas como de uma nobre raça, inteligente, trabalhadora
e perseverante, a única tribo na Índia que se tornou inteiramente católica. […]
Eles se orgulham de chamar-se a si próprios ‘os filhos de São Francisco
Xavier’”, escreve um Prelado no início do século passado.(9)
Foi nessa
Costa da Pescaria que o “Padre Francisco” realizou muitos dos seus mais
espetaculares milagres. Foram tantos e tão notáveis, que fica difícil a
escolha.
Uma vez os ferozes Badagas cruzaram as montanhas, devastando
o Travancore. O marajá, mal preparado para fazer face a esse perigo, apelou a
São Francisco Xavier. O apóstolo juntou-se ao improvisado exército,
colocando-se na primeira fila. Tão logo sua voz pôde ser ouvida do outro
lado, “o Padre Francisco, segurando seu Crucifixo, caminhou para o inimigo
[…] e gritou em alta voz: ‘Em nome de Deus, o terrível, eu vos ordeno que
pareis’”.(10) Os badagas das filas dianteiras, aterrorizados, pararam e
começaram a recuar. A debandada foi total.
“Eu te ordeno, levanta-te dos mortos!”
A cidade de
Quilon, entretanto, não se impressionava com esses milagres, e as palavras de
fogo do apóstolo não penetravam nos corações endurecidos de seus habitantes. Um
dia, quando estava rodeado por uma multidão a que não era capaz de tocar, o
Santo ajoelhou-se e pediu fervorosamente a Deus que mudasse o coração e a
vontade daquele povo obstinado. Depois de um instante, dirigiu-se ao local onde
um jovem havia sido enterrado na véspera. Pediu que o desenterrassem. “Verifiquem
todos se ele está mesmo morto”, disse à multidão. Alguns, ao abrirem o
caixão, recuaram exclamando: “ele não só está morto, mas cheirando mal”. Xavier
então ajoelhou-se e, com potente voz para que todos ouvissem, disse: “Em
nome de Deus e em testemunho da fé que eu prego, eu te ordeno: levanta-te dos
mortos”. Um tremor sacudiu o cadáver e a vida retornou plenamente a ele. O
número das conversões foi grande, e a fama do milagre acompanhou Francisco
Xavier através das Índias.(11)
Para formar um clero nativo capaz de trabalhar entre seus
irmãos, ele fundou mais quatro seminários: Cranganor, Baçaim, Coghim e Quilon.
Qual era o
segredo da eficácia apostólica de São Francisco Xavier? Era uma heróica
observância do maior mandamento de Cristo: “Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo teu entendimento” (Mt 22,
37). “Tenho tão grande confiança em Deus, cujo amor somente me move, que,
sem hesitar, com o único bafejo do Espírito Santo, afrontei todas as
tempestades do oceano na mais débil barca”.(12)
O segundo apóstolo da Índia recorre ao primeiro
Procissão portando o corpo de São Francisco Xavier, venerado
até por não católicos, pelas ruas de Goa em dezembro de 2004
Para saber
se deveria avançar mais para o Oriente em sua evangelização, Francisco resolve
fazer um recolhimento junto ao túmulo de São Tomé, em Meliapor.
O segundo
apóstolo da Índia, em contato com o primeiro, recebeu muitas graças: “Aqui
Deus lembrou-se de mim segundo sua costumeira misericórdia; Ele tem consolado
infinitamente minha alma, e me fez saber que é sua vontade que eu vá para
Málaca, e de lá às outras ilhas da região”.(13)
O resto da
história é muito conhecido. Com o mesmo zelo, São Francisco evangelizou não
somente Málaca e as Molucas, mas também muitas outras ilhas vizinhas, e chegou
até o Japão, do qual foi o primeiro e mais importante apóstolo. Ele morreu só e
desconhecido nas costas da China, com os olhos postos em suas misteriosas
terras, cuja antiga e rica civilização queria conquistar para Cristo.
No processo
de canonização do grande Apóstolo do Oriente, a Santa Sé “reconheceu vinte
e quatro ressurreições juridicamente provadas e oitenta e oito milagres
admiráveis operados em vida pelo ilustre Santo”.(14) Na bula de canonização são
mencionados muitos milagres ocorridos em vida e depois da morte de São
Francisco Xavier. Um deles foi que as lamparinas colocadas diante da imagem do
Santo, em Colate, ardiam muitas vezes tanto com óleo como com água benta.
O último milagre
relacionado a ele foi seu corpo incorrupto por séculos, cujos restos,
mumificados e danificados por homens e elementos, podem ainda ser vistos em
Goa, coroando um dos mais notáveis exemplos do Evangelho posto em prática.
____________
Notas:
Fonte: Revista Catolicismo, Dezembro/2005.
1. Mary Purcell, Don Francisco – the story of St.
Francis Xavier, The Newman Press, Westminster, Maryland, 1954, p. 108.
2. Cônego Arsênio Tomaz Dias, da Sé Patriarcal de Goa, Memória
Histórico-Eclesiástica da Arquidiocese de Goa, Tip. A Voz de S. Francisco
Xavier, Nova Goa, Índia, 1933, p. 344.
3. G. Schurhammer – I. Wicki, S.I., Epistolae S.
Francisco Xaverii, Romae, 1944, – Epist. 55, t. I., p. 325), citada pelo Papa
Pio XII em sua mensagem aos católicos da Índia, in “Boletim do Instituto Vasco
da Gama”, Bastora, Goa, Índia, Dez. 1952, p. VIII.
4. Mary Purcell, op. cit., p. 147.
5. P. Rayanna, S.J., St. Francis Xavier and his shrine,
2nd ed., Bom Jesus, Old Goa, Índia, 1982, p. 72.
6. In Dr. E. P. Antony –– The History of Latin
Catholics in Kerala, I.S. Press, Ernakulan, Índia, 1992, p. 44.
7. D. Ladislau Miguel Zaleski, Saint François Xavier,
Missionaire et son Apostolat en Inde, Ensieldeln, Germany, 1910, p.102.
8. Mary Purcell, op. cit., p. 165.
9. D. Ladislau Zaleski, op. cit., p. 204.
10. D. Ladislau Zaleski, op. cit., pp. 115-116. Ver
também “Memória…”, p. 344, Antony, pp. 45-46, P. Thomas, Christians
And Christianity In India And Pakistan, London, George Allen & Unwin Ltd.,
1954, p. 56 e J.M.S. Daurignac, São Francisco Xavier, Livraria Apostolado
da Imprensa, Porto, 5ª ed., pp. 183-184.
11. Cfr. D. Ladislau Zaleski, op. cit., pp. 114-115.
12. Carta de 8 de maio de 1845 para os membros da Companhia,
em Goa. In J.M.S. Daurignac, op. cit., p. 215.
13. Mary Purcell, op. cit., p. 182.
14. J.M.S. Daurignac, op. cit., p. 482.
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