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quinta-feira, 29 de agosto de 2019

CAÇADOR GUINÓ – Cyro de Mattos


Caçador Guinó
Cyro de Mattos

             Quando era pequeno ouviu o caçador Guinó dizer no alpendre da casa de quatro águas: ”Os netos dos fazendeiros de cacau  não serão fazendeiros de cacau...” Voz lerda: ”Cacau gosta de chuva. E as chuvas vão escassear com tanto desmatamento que não para.” Não chegou a compreender o que o caçador Guinó quis dizer com o futuro sombrio que o tempo estava reservando para a lavoura.  As matas eram profundas de tão escuras e se estendiam por baixadas e serras, até lá onde ninguém consegue alcançar e o céu acurva. As chuvas caíam sempre grossas, demoradas, os homens nunca iriam conseguir desbastar tantas léguas de mata, que cobriam a terra por léguas e léguas.

            Vivera na fazenda períodos felizes da vida, infância despreocupada, dias alegres chegados dos campos de chuva e flor. Passavam ligeiros sem que percebesse, de tanto prazer que lhe davam. Derrubava na jaqueira a fruta madura com o podão. Comia a jaca mole e doce sem pressa, sob a sombra dos cacaueiros. Andava de volta para a casa com os passos misturando-se com as folhas secas do chão, os ruídos quebrando o silêncio das roças. O suor molhava a camisa, respirava o ar puro feito de árvore e flor, que o envolvia dos pés à cabeça.

            Quando anoitecia, colocava o banquinho para o caçador Guinó sentar-se junto dele no alpendre. Aquele negro de corpo roliço, olhos quase imóveis, nariz achatado, lábios grossos, sabia contar como ninguém histórias com bichos, pássaros, peixes e assombrações. Era o único que podia andar dias na mata turva. Os homens curvavam–se à sua vontade quando o assunto era a mata trevosa. Os pés descalços, pequenos, mas resistentes. Munido de farinha, carne-seca e aguardente, cruzava a mata fechada em todas as direções, como que guiado pelo faro invisível de um bicho atento.  Conhecia as árvores pela casca e folhas. Os pássaros pelos pios e cantos. Os bichos pelos ruídos e odores. As flores pelos cheiros e cores. Tinha dois cães espertos, que o acompanhavam em suas andanças pela mata. Um colar com dentes de caititu no pescoço. Espingarda e bornal a tiracolo.

            A primeira vez que apareceu no terreiro já tinha uma cicatriz feia no braço esquerdo, marca deixada pela dentada de uma onça. Pelos cabelos brancos e pele com vincos no rosto, dava para se observar que era um homem idoso, boca quase desdentada, apenas quatro dentes, dois na parte de cima e dois na de baixo. O pai Alvinho perguntou uma vez onde ele morava, respondeu que era numa caverna abandonada por uma onça pintada com duas crias já grandes, bem longe dali, perto de uma cachoeira que caía da serra numa pancada forte e formosa. Tinha aberto uma clareira lá, onde plantou uma roça de milho e feijão, não adiantou nada, não vingou nenhuma coisa nem outra, as chuvas grossas que caíram nas semanas azedaram tudo. Adiantou que só caçava para comer o necessário, o mesmo fazia quando pescava num ribeirão de águas claras. Só matava o macho de cada caça, de preferência quando o bicho estava velho. Conhecia a idade do bicho perseguido pelo fôlego. Bicho velho não corre muito, cansa mais rápido e se entrega. Quando uma fêmea ou filhote caía no laço, soltava.

           Uma vez por mês aparecia na fazenda, os cachorros rodeando a casa, farejando tudo. O pai perguntou se ele quisesse morar na fazenda, escolhesse o tipo de serviço que mais agradasse, nas roças de cacau ou na lida com os animais de serviço ou até mesmo derrubando pau grande na mata. Ninguém nasce sabendo, tudo na vida tem um começo, o pai incentivando para ele ficar com a gente. Terminou aceitando, vindo trabalhar como apontador dos pedações de mata contendo árvores com muita madeira de lei.

               Durante o tempo que ficou na fazenda, nunca deixou de ir caçar à noite na mata fechada. Uma vez falou para os trabalhadores que a onça não mete medo nestas bandas, nem o gavião-gigante, nem a cobra enorme da lagoa. O que mete medo mesmo é um bicho que anda em duas pernas aqui em cima, este é o mais perigoso. Onde só um manda, os demais não andam porque vivem se arrastando com a canga que lhes foi botada. Ele mesmo já tinha passado por isso na pele, no tempo que foi escravo, lá no Engenho de Porto Verde. Num momento de distração do feitor, fugiu da senzala, saiu disparado pelo canavial, ganhando cortes das folhas da cana, ferindo-se no corpo todo. Passou fome, sede, frio, noites acordadas. Rezou para os espíritos da mata, dormiu em cima de árvore, mas ficou livre para sempre, melhor do que ser escravo é viver como caçador dentro da mata braba.

            Pai Alvinho, ao saber daquelas falas dele, achou que era uma afronta que merecia ser corrigida. Mandou que ele não ficasse mais na fazenda, fosse morar na mata, era lá o seu lugar, no meio dos bichos de pelo e de pena, que ele tão bem conhecia e entendia como ninguém neste mundo.

           Foi justamente o que aconteceu.  O caçador Guinó foi morar na mata, perigosa, escura, de tão fechada. Nunca mais se ouviu falar dele.

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Editado no exterior. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz -Uesc.

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