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quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ADEUS, MR. HILTON – Érico Veríssimo


            
James Hilton está em San Francisco. Anda a percorrer a Costa do Pacífico num rápido giro de conferências. Vai falar hoje à tarde na Galeria da Livraria de Paul Elder. Encontro-o a experimentar o microfone. É um homem de estatura meã não terá mais de quarenta anos e os cabelos, dum pardo esverdinhado, estriado, de muitos fios brancos, dão um ar respeitável a este rosto de expressão quase juvenil. A cara é vermelha, o queixo saliente, os olhos, macios e azuis. Veste-se com uma simplicidade um pouco desleixada, e quem o vê ali de mãos nos bolsos pode pensar que ele é um dos empregados da Livraria, um vendedor de praça, um gerente de restaurante, tudo - menos o autor de Não Estamos Sós e Adeus, Mr. Chips.

            Com sua voz calma, despretensiosa, conta-me que mora em Hollywood e que nunca vai a festas.

            - Minha vida não é nada sensacional. Sou um tipo muito quieto. Acredita que não sei onde fica o Ciro’s?

            Trabalha para a Metro-Goldwyn-Mayer, escreve cenários, transforma os romances alheios e os seus próprios em scripts de cinema e adora a atividade dos estúdios.

            - Fico horas olhando aquela gente trabalhar. Não conheço nada mais absorvente que a tarefa de um diretor. Ele lida com um material vivo, com pessoas e não com palavras, como nós os escritores. – e sorrindo, as mãos enfiadas nos bolsos, acrescenta: - Acho que um dia ainda vou dirigir um filme.

            Peço-lhe que me conte como iniciou sua carreira literária.

            - Comecei num jornal, fazendo reportagens e, mais tarde, crítica literária.

            - Em que jornal?

            - No Daily Telegraph. Lia uns vinte romances por semana...

            - Já escrevia novelas nesse tempo?

            - Escrevia e, o que é pior, publiquei uma quando tinha 19 anos. No momento em que cheguei a perceber a asneira que tinha cometido, saí a comprar todos os exemplares do livro que existiam no mercado. Era uma novela horrorosa. E não foi a única... - acrescenta. - Muitos de meus primeiros livros foram verdadeiros fracassos. Aconteceu apenas que, no fim de algum tempo, eram tantos que eu não tive mais dinheiro suficiente para resgatá-los.

            Pergunto-lhe se escreve sistematicamente ou espera que lhe venha o que em geral se chama “inspiração”. Ele leva a mão à gravata desbotada e diz:

            - Eu escrevo só quando tenho vontade... Nada mais.

            - Pareceu-lhe satisfatória a versão cinematográfica de Adeus, Mr. Chips?

            - Quando me propuseram filmar o livro, achei que ele não daria coisa que prestasse. Mas, quando vi o filme, gostei tanto que fiquei alvorotado. É verdade que nunca imaginei o velho Chips no Danúbio...Mas apesar disso, tudo estava muito bem.

            - Inspirou-se em alguma pessoa viva para criar a figura de Mr. Chips?

            James Hilton entorna a cabeça, ergue as sobrancelhas e responde, com ar meio vago:

            - Numa pessoa propriamente... não. Mas em várias professores que conheci. Sempre tive uma simpatia especial pelos velhos mestres. O mundo depende muito dos professores... hoje mais que nunca. Meu pai mesmo é um professor, se bem que muito diferente de Chips. Mora em Hollywood comigo. Como eu, é um homem caseiro.

            Quanto ao método que segue na composição dos romances, informa:

            - Às vezes escrevo uma sinopse que, de tão simples e resumida chega a ser ridícula. Mas o principal para se fazer o romance é, primeiro, a ideia central, depois, a disposição de espírito. O resto vem mais tarde, naturalmente.

            - No seu último livro, Random Harvest, julguei ver no destino da personagem central uma alusão à Inglaterra. Pareceu-me que Rainier é uma espécie de símbolo, é a velha Britânia trilhando um caminho errado, mas percebendo em tempo o seu erro e recuperando o antigo espírito. Será que acertei?

            - Perfeitamente. Alegro-me de ver que compreendeu. Foi o que eu quis dizer nesse romance. Não gosto dos livros com finalidade, das obras de propaganda. A simbologia no meu último romance está diluída na história.

            Para Hilton, o maior de todos os romancistas que o mundo produziu foi Destoievsky. Na América, hesita entre Ernest Hemingway e John Steinbeck. Tem um encanto especial pelas irmãs Bronté e acha “O Morro dos Ventos Uivantes” um dos mais belos romances que já se escreveram.

            Com relação às personagens de seus livros, nega que elas sejam copiadas da vida. Mas esclarece:

            - Não podemos, entretanto, deixar de sofrer a influência das pessoas que encontramos, das criaturas com quem vivemos.

            - Onde descobriu o nome Xangri-lá, o Paraíso do seu Horizonte Perdido?

            - Pura invenção. Inventei-o numa viagem de ônibus. Eu estava procurando um lugar pano situar o meu “paraíso”. Pensei na Arábia: era muito arenosa. Pensei no Brasil: tinha muitas tarântulas...

            - Não esperava encontrá-lo também influenciado pelas “fórmulas” segundo as quais o Brasil é um país de palmeiras, índios, florestas e tarântulas... Mas prossiga.

            - Sorry. A gente ignora muita coisa. E a propósito de suscetibilidade vou lhe contar uma dificuldade de Hollywood. Por causa da política de boa vizinhança os “homens maus” dos filmes não podem nunca ser brasileiros, peruanos, mexicanos, argentinos. Têm que ser necessariamente norte-americanos... ou ingleses.

            - Mas... voltando às tarântulas.

            - Ah... Por fim achei que o melhor lugar para o teatro da minha história era um monastério dos lamas no Tibete. Inventei aquele nome. E sabe qual é a minha maior glória?

            - Não.

            - Existe em Los Angeles um campo de nudistas chamado Xangri-lá. Não é só isso. Xangri-lá também é o nome do uma tenda que vende cachorros quentes nos arredores de Hollywood.

            Passamos a falar na guerra. James Hilton tem uma fé inabalável na Inglaterra. E que ele está convencido de que sua pátria se tem de redimir dos erros do passado, o seu “Random Havest” é uma prova admirável. Declara-me que está pronto a servir, e que seu nome se acha na lista dos combatentes.

            - Não sei em que departamento me vão por, quando me chamarem. Mas já ofereci meus serviços. Penso que serei mais útil no trabalho de propaganda.

            Acrescenta que os amigos da Inglaterra que lhe escrevem, esperam com coragem e Fortaleza de ânimo o ataque que pode ser desfechado sobre a ilha a qualquer instante.

            Quando nos despedimos com um aperto de mão James Hilton me diz:

            - Dentro de duas semanas estarei em Hollywood. Quando chegar lá, não deixe de telefonar para o estúdio. Vamos almoçar um dia juntos.

            E, parodiando a personagem da história de Mr. Chips, volto-me da porta e lhe digo:

            - Adeus, Mr. Hilton!


(GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE)
Érico Veríssimo
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Érico Veríssimo - (Cruz Alta17 de dezembro de 1905 — Porto Alegre28 de novembro de 1975) foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX.

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