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terça-feira, 16 de julho de 2019

NOITE DE CHUVA – Ariston Caldas


  
        
Escorou-se à janela na esperança que o tempo melhorasse. Era uma noite feia, sem estrelas, entremeada por uma chuva fina, incessante, empoçando as ruas, dificultando o trânsito das pessoas; tudo deserto, as biqueiras num trós-trós, às vezes cadenciado, outras sem ritmo, assustando; lâmpadas opacas entre os chuviscos, por trás das vidraças, penduradas pelos postes, ornamentando a torre de uma igrejinha no centro da praça principal. “Parecendo início de Semana Santa”, pensou, chateado, acendendo um cigarro; ajustou pelo corpo uma capa preta, ajeitou o chapéu, decidindo enfrentar o temporal miúdo e incessante que o impacientava. Saiu cauteloso, desviando-se das poças; a capa preta, de oleado, emitia um brilho semelhante à pele de sanguessuga, ante os reflexos das lâmpadas mortiças, entre a penumbra orvalhada pela garoa que ele parecia infinita.

            Enquanto caminhava, lembrou com desgosto da vida militar, onde passou cerca de um ano, contrariado, obedecendo ordens de superiores hierárquicos, cumprindo tarefas insuportáveis; lembrou das fardas mal lavadas , cheirando a sujo, dos alojamentos abafados, das camas enfileiradas parecendo de enfermaria; da ordem-unida, da física, manhã cedinho, quando  camaradas cheirando a suor escanchavam em seus ombros; da petulância e do pedantismo de alguns graduados aos gritos, orgulhosos até às batatas das pernas. Via-se às voltas com o cabo Evaristo, baixinho de pernas tortas, bruto, enfarruscado: “Você aí, seu cara de sergipano!”

            O tenente Costa, de cavanhaque louro e óculos com aros finos dourados, bigode com pontas viradas, montado num cavalo esquipador, desfilando nas folgas pela avenida beira-mar. Em compensação, quando deixou a farda, era dono de uma carteira de primeira categoria. No dia do licenciamento, mesmo sem dinheiro, passou a noite badernando pela rua, em companhia de alguns companheiros também licenciados.

            A chuva trazia-lhe essas recordações súbitas. Tentou esquecê-las dando um muxoxo. Veio-lhe à memória a morte do tio Eusébio com uma úlcera no estômago. Parecia ver o cenário em seu redor, a sala humilde onde se dera o passamento, a chegada do tio numa rede enforquilhada conduzidas por dois homens com as camisas atadas a cintura, suados; dia chuvoso, à tardinha, o tio soltou o último suspiro. Ao redor da cama, a mulher e dois filhos, ela chorando, calada, vez em quando enxugando o rosto com um lenço branco, encardido; os dois meninos, assustados, sem afastarem os olhos do pai espichado, feições fundas, barba crescida. Fora, caía uma chuva fina, incessante, com rajadas de vento frio. No dia seguinte, acompanhou o enterro e assistiu, de olho duro, descerem o tio dentro de um caixão preto sustentado por cordas, para o fundo de um buraco; um negro musculoso e careca enchia uma pá de terra e ia entulhando a cova, barulho fofo ruía no fundo a cada batida do barro sobre o caixão; pessoas presentes falavam coisas que se repetem nessas ocasiões, “Deus lhe abra as portas do céu”. “Coitado, finalmente descansou”. Parecia ver, naquele instante, o pequeno grupo de pessoas cabisbaixas saindo pela porta da frente do cemitério onde o tio ficaram para sempre.

            De súbito, levou um escorrego, mas não caiu. A lembrança do enterro afastou-se, a chuva fina insistia. As goteiras pingavam, as lâmpadas pelos postes de madeira, embaciadas, a capa preta de oleado esfriava. O dia seguinte seria domingo, dia de descanso; iria, como de costume, arrumar o quarto, ajeitar as roupas, separar as que iam para a lavadeira; lustrar os sapatos, assistir a algum programa de televisão, aguardar outra segunda-feira chata, entre as mesmas caras, repetindo contas, arrumando coisas no escritório cheio de livros, computadores, o gerente no compartimento ao lado, de óculos brancos, gravata, bem penteado.

            Lembrou do salário pequeno, dos preços das coisas aumentando a cada dia. Olhou para o céu sem estrelas, nem nos confins dos horizontes turvos, sem paisagem. Uma amendoeira próxima atinou-lhe que estava chegando à casa de Juanice, moça que conhecera havia pouco tempo. Desabotoou a capa de oleado, escorreu por ela as mãos frias, espanando os chuviscos impregnados na superfície. Arrancou a ponta de cigarro dentre os beiços e atirou-a numa poça d'água próxima a um poste da rede elétrica; tirou o chapéu. Subiu para o passeio, três passos e bateu com veemência à porta da namorada: “Sou eu, Juanice!”.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas

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