24 de abril de 2019
Péricles Capanema
Era pouco antes das sete da noite, segunda-feira pacata de
abril, e de repente em Paris o fogo, parecendo vomitado do inferno, estralejou
violento no madeirame da catedral de Notre-Dame de Paris. Subia, ardia,
baixava, lambia e devorava o que encontrava, diante de espectadores aterrados.
O mundo, estarrecido e aturdido, julgava ter diante dos olhos o que não podia
acontecer. Continuou por horas o espetáculo dantesco.
Pouco a pouco, na capital francesa, depois do choque
inicial, pairou o silêncio, a dor, aqui e ali magotes rezavam e entoavam
cânticos. Houve também silêncio, dor, desnorteamento, orações no mundo inteiro.
Perplexidade. Por fim, cintilou uma nota de alívio. As duas torres estavam
salvas. Aos poucos, foi sendo divulgado que muita coisa não tinha sido
consumida pelas labaredas. Acidente? Atentado? Por enquanto é prematuro
concluir.
Perdoem o chavão, tentei ouvir o silêncio, explicitar o
imponderável. Pus atenção nas reações do povo de Paris e do mundo inteiro. De
forma particular, nos magotes em torno da catedral crucificada pelas chamas.
Havia um denominador comum, a compunção, muito relevante na multidão que rezava
e cantava hinos religiosos.
Não pretendo aqui repetir o que outros já comentaram com
talento, em especial, valor simbólico, perda, prognósticos. Foco em outro
ponto, tem relação próxima com a compunção que, esperançado, observei surpreso.
Imaginei situações diversas, comparações, sempre admitindo a
origem acidental do incêndio. Tudo muda, existindo mão criminosa. Se o fogo
tomasse a catedral da Milão, também joia da arquitetura gótica, que reações
desencadearia entre os milaneses? Na Itália? No mundo? E se o incêndio fosse na
catedral de Colônia? Em Chartres? Em Reims? Catedral de Sevilha? Basílica de
São Marcos? Na própria catedral de São Pedro? Como reagiriam os nacionais? Como
reagiria o mundo?
Ampliei a figuração. Fogo na abadia de Westminster? No
Kremlin? Na estátua da Liberdade? No Taj Mahal? Na Esfinge ou nas pirâmides? De
que forma reagiria o mundo?
Lembrei-me do horror mundial quando o Estado Islâmico — no
caso, de forma criminosa estruiu dezenas de sítios arqueológicos no Iraque e na
Síria.
Entre nós, se o fogo acabasse com o Cristo Redentor? A
imagem da Aparecida?
Existe, parece-me certo, em muitos aspectos, traços mais
fortes, uma comoção maior, por ter sido Notre-Dame de Paris. Tem relação com o
templo, extraordinária expressão da alma medieval, com a ordem temporal cristã,
com a França. E com seus reflexos na cultura ocidental.
Por associação, lembrei-me de discurso pronunciado pelo
cardeal Eugênio Pacelli, futuro Pio XII, na ocasião legado pontifício, na
catedral de Notre-Dame de Paris — 13 de julho de 1937. Foi leitura minha anos
atrás, na ocasião fiquei impressionado.
Recolhi alguns pequenos extratos: “Como exprimir, meus
irmãos, tudo o que evoca no meu espírito, na minha alma, igual na alma e no
espírito de todo católico, até direi, em toda alma reta e em todo espírito
culto, o nome de Notre-Dame de Paris! Porque aqui é a própria alma da França, a
alma da filha primogênita da Igreja”.
O Purpurado diz que ali ecoam as vozes de Clóvis, de santa
Clotilde, de Carlos Magno, sobretudo a voz de São Luís IX. Ele parece
escutá-las. E se pergunta a causa de tanto simbolismo em Notre-Dame. O futuro
Pio XII pôs de lado raça e determinismos como causas: “É inútil invocar
fatalismo ou determinismo racial. À França de hoje que lhe pergunta, a França
de outrora responderá dando a tal herança seu nome verdadeiro: vocação”.
Vocação, chamado providencial, realidade superior,
imponderável por vários lados, evocada de forma incomparável por Notre-Dame de
Paris. Na compunção pela agressão ao símbolo, ainda que de forma germinativa,
havia abertura para o simbolizado, a vocação da França.
O impulso extraordinário para reconstruir a catedral,
expresso em doações gigantescas (família Pinault, grupo LVMH, família Arnault,
família Bettencourt-Meyers, grupo L’Oréal, Apple, para citar alguns grandes
doadores) é sintoma do horror que causou na opinião francesa e mundial a
devastação do incêndio. Tem importância ímpar.
Traz, porém, no bojo uma ameaça: tornar fashion,
prestigioso, o movimento pela reconstrução. Com isso, facilmente poderá sair do
foco a compunção. Iria minguando, chegaria até ao esquecimento. Semente de
restauração, a compunção vale mais que qualquer riqueza.
* * *
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