O herói
Cyro de Mattos*
Feitos superiores, inacreditáveis, aclamado como herói,
inigualável.
Coragem digna dos heróis gregos. Cada proeza inspirava
histórias de cordel surpreendentes, os trovadores vendiam os folhetos na feira.
Certa vez enfrentara uma onça preta, a mais temida entre os
grandes felinos da Mata Atlântica. Fugira do circo, invadira a rua do comércio
em plena luz do dia, faminta, há oito dias não se alimentava.
Gente correu
para dentro das lojas, as portas imediatamente fechadas.
Menino lá dentro chorava, a mãe rezava, o pai se urinava.
Lá fora correu atrás da bichona, estava prestes a abocanhar
uma criança. Saltou no cangote da fera, deu um murro no ouvido, quebrou-lhe o
pescoço com um golpe.
Pessoas apavoradas deixaram as lojas, salvas pelo herói
Hércules, abraçavam-se, sorrindo. Mais
uma vez livres do perigo. Bateram palmas demoradas para o intrépido e audaz
herói da cidade com um comércio próspero.
Outro dia
venceu os assaltantes ao banco. Ali mesmo alvejou vários deles com os tiros certeiros deflagrados com
o revólver cano longo, calibre 38. Saiu
na moto em perseguição do último
assaltante, o carro do vilão fazendo ziguezague na disparada. Atirou no pneu
traseiro do carro em fuga, rodopiou,
capotou e bateu no poste.
Trêmulo, o bandido
cabeludo, a barba crescida, tatuagem de
mulher nua no pescoço. A arma apontada na sua cabeça. Pedia com o rosto
choroso, tenha dó, seu Hércules, não vou
fazer mais isso, eu lhe prometo, não me dê uma surra, seja piedoso.
Recebido com palmas calorosas, vivas, assovios dos que
assistiram as cenas, pasmos. Todos sabiam outra vez que com o seu herói
infalível a cidade estava segura. Onde aquele homem de cara fechada conseguira tanta coragem?
Quando veio ao mundo, contam os mais antigos, ele foi dizendo logo, aqui cheguei para
derrotar os malvados, proteger os injustiçados, não tenho medo de cara
feia, lobisomem, muito menos de alma
serva do demônio.
O Prefeito baixou
decreto honroso, considerando seus feitos altamente corajosos, cívicos,
exemplares. Seria condecorado com a Medalha Fundador Filinto Sabre, o homem que
penetrou a mata hostil, pegou cobra com a mão, esmagou com o pé, afugentou
onça solteira ou acasalada, comeu
inseto, bebeu água de ribeirão com a concha da mão calosa. Depois dele tudo ficou mais fácil na selva
hostil e impenetrável. De todas as
partes os forasteiros chegavam, os acampamentos na mata viravam vilas, em
poucos anos eram cidades.
Foi chamado
ao palco no dia do centenário da cidade. Todos aplaudiram de pé. Antes que
fosse condecorado com a distinção cobiçada, a mais alta honraria do executivo
municipal, gaguejou com uma voz amedrontada diante do homem vermelhuço, rosto
flácido, narigudo, orelhas de abano, um
olho de vidro, em posição solene.
- Tire ela
daqui, está perto de meu pé; se não tirar, saio correndo.
Acrescentou o
herói, em pânico:
- Desde
pequeno tenho medo de barata!
*Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Possui prêmios
literários importantes. Publicado também em Portugal, Itália, França, Alemanha,
Estados Unidos, Rússia e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia e Pen clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual
de Santa Cruz. Autor de mais de 50 livros de diversos gêneros.
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