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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O APOSTADOR - Cyro de Mattos


 O Apostador


            Começou jogando no bicho. Mudou para a loteria federal. Meses depois migrou para a loteria esportiva. Agora estava de olho gordo na mega-sena. Só valia ganhar, se fosse o único ganhador, entre milhares de apostadores. Mega-sena acumulada, ao felizardo marés de milhões. Ele, o apostador incorrigível.

            A mulher tentou livrá-lo do vício. Brincadeira no início, logo pegou feito visgo. De tudo tentou. Benzedeira, banho com sal grosso, cartomante. Candomblé, espiritismo. Fez promessa forte a santo Expedito, o santo das causas impossíveis. Não adiantou.

            O pequeno patrimônio, com tanto esforço adquirido, sendo dissolvido. Primeiro o sítio, depois o automóvel, a própria casa. Morador agora de apartamento pequeno, sem luz do sol, vento fresco. Aluguel modesto, conjunto habitacional popular.

            A aposentadoria precária evitava que passasse fome.

            Não tinha jeito. Todos os dias fazia o jogo, bebia sua bebida especial. Mês entrava, mês fugia. Até as joias da mulher, herança recebida da mãe, que recebera da avó, foram vendidas. Apostava, apostava. Venderia a alma ao tinhoso, se preciso. Seguia em frente. Um dia acordaria como o grande ganhador. Não conseguia fazer sequer a quadra, não desistia. Quem não aposta, nunca ganha, uma máxima que os apostadores não esqueciam, seguiam à risca, dela não fugiam.

            Alardeava. No dia que tirasse a sorte grande com a mega-sena acumulada, faria a maior surpresa a centenas de pessoas de sua cidade natal. A cena diante dos rostos pasmos, na avenida principal, abarrotada de gente. Distribuiria dinheiro gordo com muita gente, de preferência com os mais desvalidos. Queria ver todo mundo sorridente.

            Foi comprar o pão na padaria do bairro. Na rua, as fezes do pombo acertaram sua cabeça. Que nojo! Considerou o fato, podia ter sido um aviso. Entre tantos habitantes da cidade populosa, só ele foi o agraciado, ao ser carimbado com as fezes das aves na cabeça. O imponderável poderia favorecer-lhe em dados positivos lá na frente. Acertaria na mega-sena, para isso acontecer continuasse fazendo as apostas seguidas.

            Fez o jogo, riscou apenas uma sena na cartela. O dinheiro estava curto, há tempos não fazia jogo alto. Foi conferir depois, o coração acelerado. Só alegria, acertou em cheio na mega-sena. Sozinho. Ganhou o mundo a notícia. Acertador do maior prêmio acumulado pela mega-sena fez apenas um jogo em uma cartela.

            Cumpriria a promessa. Compartilharia o dinheiro ganho na mega-sena com muita gente.

            Estavam crentes, pobres, medianos e ricos, que ele ia distribuir muito dinheiro na avenida principal.

            O trânsito interrompido. O locutor pelo megafone parabenizava o homem da sorte grande. Não cabia de gente a avenida principal naquele trecho.

            Todos ficaram perplexos com a cena surpreendente. Tirou as roupas do corpo, tacou o facão em cima e tocou fogo. Ficou gritando: “Dinheiro você diz que me quer bem, no meu bolso você vem!”

            Foi morar no sanatório Bom Retiro. Lá continuou a fazer as apostas para acertar de novo na mega-sena.


Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por editoras europeias. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal.

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