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sábado, 12 de janeiro de 2019

COMO SE FOSSE UM CASTIGO – Ariston Caldas


Como se fosse um castigo


            Cirilo conheceu Neidinha na última Primavera, ela de bermuda, blusinha de seda florida, sandálias brancas; muito bonita, quinze anos, até parecia ter mais, pela robustez. Cirilo soube da idade dela logo depois e aí comparou à dele, contando nos dedos. Quinze anos mais velho. Mais não teria sido isso a causa do arrependimento mais tarde, dez dias depois, quando conheceu Jacilda, mãe de Neidinha; 35 anos, viúva, mais bonita que o sair do sol, como ele a simbolizara no momento, dando uma de poeta. Talvez fosse tarde.

            De qualquer forma não deveria sentir-se triste, afinal de contas a filha de Jacilda era uma gracinha, mesmo sem comparações com a mãe, “uma protuberância”. A espontaneidade dos olhos, dos lábios; os gestos, os cabelos alucinantes, as pernas, a voz, tudo uma loucura. Neidinha era calada, macia. “Puxou ao pai”, dizia Jacilda – retraída, calma, sutil. Foi assim para aceitar as declarações de Cirilo, exigindo prazo para resposta; disse sim, muito séria, como se estivesse atormentada. Até o primeiro beijo foi outra novela e quando isso aconteceu o foi num cantinho da boca, de susto.

            Nas conversas curtas, Neidinha falava sobre o pai dela, chamava-se Amaro Veiga, 40 anos quando morreu num desastre aéreo. “Era calado assim”, dizia Jacilda espichando um canto da boca. Amaro deixou um seguro para ela, uma casa e diversos bens miúdos como móveis, eletrodomésticos e dois terrenos na área urbana central da cidade. Neidinha era filha única.

            Nas primeiras aproximações com Jacilda, Cirilo não chegou a exageros, mas sentiu um impacto no juízo transmitido pelo cheiro do corpo, pela estética das mãos, pelo jeito de andar; tantos detalhes preciosos que nem os sabia peculiarizar. Tentação. Se não tivesse conhecido Jacilda, teria casado com Neidinha em pouco tempo, mesmo porque a menina era bonita, mesmo sem o feitiço da mãe dela. Agora era uma dualidade; comprava presentes para as duas, mas com uma diferença: para Jacilda, tudo especial; no aniversário dela comprou uma bolsa de luxo e um estojo de perfume importado. Nunca dera um presente assim a Neidinha; trazia-lhe balas de mel, chicletes de hortelã; uma vez por outra, uma blusinha de malha, uma sandália simples. 

            Jacilda tinha mais sorte – vestidos de luxo, perfumes do estrangeiro. No último inverno ganhara um casaco de pele. Com o tempo, Neidinha passou a sentir essas coisas; de início até gostava de ver a mãe ganhando presentes valiosos, depois notou a diferença para os que ela recebia, mas não chegou a desconfiar: “por causa do santo, se beija o altar”, lembrou. Não tinha motivo para desconfiar de Cirilo com Jacilda, mulher de boa cepa, educada, moral alta. Ninguém no mundo era capaz de acusa-la disso ou daquilo; Cirilo, funcionário público de conceito, bem remunerado, de família decente, responsável. Pensando assim, Neidinha sentia-se tranquila, sem maldade, mesmo observando os presentes caros e a intimidade crescendo entre os dois. “Considerações ao futuro genro”, pensava.

            Toda tarde, quando Neidinha voltava do colégio das freiras, onde estudava, tomava banho, arrumava-se toda, perfumava-se e, depois da janta, sentava-se num estofado na sala de espera onde ficava aguardando Cirilo que só chegava depois das oito. Mas, como tudo na vida é mutável, naquela tarde Neidinha saíra cedo do colégio, uma professora dela adoecera. Rumou para casa, onde cuidaria dos deveres escolares. Tinha a chave da porta; entrou tranquila lembrando da professora doente. “De quê?” Não seria coisa grave.

            Pela porta escancarada do quarto de Jacilda, veio a surpresa. Não acreditou no que viu, era Cirilo nu deitado com ela também despida, tranquilo, folheando uma revista como se nada estivesse acontecendo no mundo; Jacilda alisando-lhe a barriga cabeluda. Neidinha sentiu vontade de gritar, mas não gritou; fitou novamente o cenário, sem acreditar no que via, sentiu falta de ar, imaginou que estava tonta; virou as costas, baixou a cabeça, disparou aflita e foi sentar-se no pátio que dava para o quintal onde acomodou a cabeça sobre os joelhos e desatou a chorar.

            Momentos depois Jacilda apareceu de short, cabelo desarrumado, mas tranquila como se nada tivesse acontecido. “Parece um pesadelo”, pensou Neidinha enxugando os olhos com os dedos.

            À noite, depois do jantar, Jacilda tratou do assunto com Neidinha: “Cirilo vai se casar comigo. Não fosse você, queridinha, eu teria perdido esta oportunidade”. Neidinha ouviu tudo calada, imóvel, com a imagem impura da mãe nua alisando a barriga cabeluda de Cirilo. E, abafada, saiu cabisbaixa para o quarto onde dormia, passando a noite sem pregar um olho, entre pensamentos mórbidos, com vontade de gritar bem alto: “Puta!”.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico ‘Terra Nossa’, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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