A tarde
era de sol, algumas nuvens brancas; sentia-se cheiro de enfado.
Sentou-se
num jardim, lembrou-se do colégio de padres onde cursou o segundo grau e tinha
uma área ampla com palmeiras, canteiros ajardinados; sentiu sua infância ao
olhar uns meninos que passavam vigiados por empregadas domésticas; via moças de
short e de tênis, com os cabelos soltos.
Lembrou-se de Floripes, quase sua
noiva, “se eu tivesse casado com ela!” Floripes casou-se com outro e teve um
filho excepcional; “se fosse comigo teria ocorrido o mesmo?”
Olhava
para as flores pelos canteiros do jardim, sentia uma brisa esfriante tangida do
mar; assustou-se com a buzina de um carro estacionado ao lado; “este filho da
puta é doido!” O dono do carro nem o olhou e continuou buzinando.
No tempo
de quase noivo de Floripes era um sujeito alegre, vestia-se bem e não tinha
arranhões com a vida, mas o tempo mudou as coisas, pondo-o frente a um mundo
diferente, estranho; nem imaginara que tudo mudasse assim. Sentia-se amargo.
Naquela tarde sol voltava a sentir
Floripes, quase sua noiva; “Por que aconteceu?” Lembrou Geraldina estendendo a
roupa no quintal vizinho, mulata nova, bonita mas de pouco tino, parecendo
doida. “Usei Geraldina como se fosse um bicho, na beira do rio, tudo escuro,
entre muriçocas e rabanadas de peixes pela superfície.” Geraldina gemia,
xingando a princípio, mas aquietou-se depois; saiu toda doída,
enxugando-se com a borda do vestido,
desvirginada. “Floripes me deu o troco”.
Do outro
lado do jardim apareceram uns colegiais marchando, com bandeiras hasteadas,
repicando tambores lembrou-se do tempo de colégio e da vida militar; não gostava
de uma coisa nem da outra, mas as duas se misturavam, os tambores o
ensurdeciam, a marcha deixava-lhe uma sensação de cansaço. Fez o curso primário
numa escola pública e nas festas cívicas desfilava pelas ruas, de calça curta,
tênis brancos apertando os pés, sol pelando, bandeira em punho; quando o
desfile passava, os moradores saíam para os passeios, outros se acotovelavam
pelas janelas, batiam palmas, davam vivas; depois havia a concentração no meio
da praça onde ficavam a prefeitura e a igreja; os discursadores entravam pela
noite falando coisas repetidas, exortando os heróis responsáveis pela grandeza
da pátria; os tênis apertando os pés, sentia fome, a goela apertando, as pernas
fracas. Quando terminava a concentração, ele estava aporrinhado, enrolava a
bandeira embaixo do braço e saía desejando que nunca mais houvesse desfile. Naquele
tempo Floripes nem existia, ele nem imaginava que ela nascesse e fosse quase sua
noiva, casasse com outro para ter um filho excepcional.
Os estudantes
sumiram por uma esquina e o som dos tambores perdeu-se entre os edifícios que
não tinham nenhuma pessoa pelas janelas nem pelos passeios. Agora, sentia-se
enfastiado, como quem não vai bem de saúde ou de espírito; respirou fundo,
levantou-se e esticou os braços, espreguiçou-se. Sempre fui forte!” Mas não
reagiu coisa nenhuma.
Depois do
almoço sentiu-se assim e saiu para o jardim; nunca imaginara que Floripes fosse
casar com outro, tivesse um filho excepcional; lembrava-se de Geraldina gemendo
embaixo, de olhos fechados na beira do rio, enxugando-se depois.
Agora a
noite aproximava-se, voltaria para o pensionato onde dormia, num quarto escuro
e estreito, pouca ventilação; dona Eulália sacudindo os móveis velhos, com
espanador de penas, cheiro de comida chegando da cozinha; o quarto sempre
desarrumado, cheio de sujo, roupas penduradas pela cabeceira da cama, telhado
cheio de pucumã. “Seu porco”, dizia dona Eulália; as lagartixas cruzando pelas
paredes encardidas.
Só deitava-se
depois da meia-noite, lembrava-se de Floripes, cabelo ondulado. “Devia ser com
você”, disse ela na véspera. Ele nem acreditou; baixou a cabeça, calado, e saiu
indignado para um jardim parecido com o que se encontrava agora.
Pensou ainda
por alguns instantes, a cabeça pegando fogo. “Um ridículo!” “quanto tempo,
parece que foi ontem”, pensou, levantando-se; lembrou-se do sanatório, “um
inferno”.
Passou u’a
mão pela testa, repetiu olhares para um lado, para outro e saiu de cabeça
baixa, rua a fora, à busca de coisa nenhuma.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da
Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do
estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde
residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos
jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o
periódico ‘Terra Nossa’, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do
Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio
Jornal.
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