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domingo, 25 de novembro de 2018

O SERTANEJO – Euclides da Cunha


     
O sertanejo é, antes de tudo, um forte.


            Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

            A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

            É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete, no aspecto, a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente no primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo passo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai, é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

            É o homem permanentemente fatigado.

            Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

            Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

            Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas.

            O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos  do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro,  reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento de força e agilidade extraordinárias.

(OS SERTÕES)
Euclides da Cunha, em ANTOLOGIA NACIONAL, de Fausto Barreto e Carlos Laet – 31ª edição, Livraria Francisco Alves, São Paulo, 1954.

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            EUCLIDES RODRIGUES PIMENTA DA CUNHA nasceu em Cantagalo, RJ, em 1866. Após uma infância difícil e uma vida estudantil-militar marcada por atos de insubordinação e punições, formou-se em ciências e matemática na Escola Superior de Guerra, onde fez também os cursos de artilharia, estado-maior e engenharia militar.
            Em 1895, deixou a farda e, mudando-se para São Paulo, passou a dedicar-se à engenharia civil e, logo em seguida, também ao jornalismo, enviado à Bahia como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo” para cobrir a fase final  da luta entre forças governamentais e os rebeldes de Canudos (1897), publicou a respeito uma série de reportagens e colheu material para seu grande livro – “OS SERTÕES”, vindo à luz em 1902.
            Em 1904, a convite do Governo, chefiou a comissão de reconhecimento das fronteiras brasileiras no Alto Purus. Retornando, ficou no Rio de Janeiro como adido ao gabinete de Rio Branco, no Itamarati (Ministério das Relações Exteriores). Eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomou posse em 1906.
            Morreu assassinado, em 1909.
            Obras: Além de “OS SERTÕES”, deixou “Contrastes e Confrontos” (1907) e “À Margem da História” (1909).

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            Toda a fama de Euclides da Cunha “nasceu com OS SERTÕES, obra que retrata com impressionante força verbal e intenso realismo a terra e o homem do sertão nordestino e a luta sangrenta contra os fanáticos de Canudos. Nesse livro, que é um monumento de nossas letras e mereceu ser traduzido para vários idiomas, o autor revela-se, a um tempo,  cientista emérito e primoroso estilista. A linguagem de Euclides da Cunha, opulenta, nervosa, veemente, é o reflexo de sua alma indômita e de seu caráter retilíneo.” (Domingos Paschoal Cegalla).

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