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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

VISITA – Ariston Caldas




            Cheguei à casa de seu Raimundo numa manhã ensolarada; a residência dele fica no topo de uma ladeira disfarçada e em frente estende-se uma paisagem que é uma beleza, confrontada com o sair do sol; embaixo, junto à cerca que faz divisória com os cacauais, há uma represa ampla entre arbustos e flores silvestres. Ele, de fala mansa, recebeu-me com olhar tranquilo, sorriso leve; sua calma era de espantar, como se minha presença não fosse, assim, nenhuma novidade.

            Calculei, havia quase 15 anos encontrava-me ausente, distante, andando por este mundo de meu Deus; e ele, agora, somente com a mulher e o filho mais velho. Seu Raimundo nunca deixou a fazenda aonde chegou menino, cresceu, casou-se e, certamente, morrerá, a não ser para assistir missa vez em quando e fazer “fecha” de cacau na cidade. Os outros filhos dele andam espalhados, o mais novo formou-se em medicina e reside em Salvador; a filha casou-se com um paulista e pouco vem à Bahia; outro se meteu com pecuária para as bandas de Minas Gerais, aparece vez em quando.

            Mudanças pessoais em seu Raimundo, quase nenhuma; ainda usa chinelos de couro, cabelo desarrumado caindo sobre a testa um pouco mais ampla; camisão de mangas compridas e óculos de tartaruga num bolso debrunhado, misturados com palhas de milho para cigarro e um canivete antigo; bigode com fios embranquecidos.

            Numa parede da sala, cabide de madeira escura com roupas de campo penduradas, um chapéu de baeta de aba quebrada na frente; embaixo do cabide, umas botinas amarelas com manchas escuras. Dona Antonieta, mulher dele, não se esqueceu das saias rodadas de cós franzido, cabelo liso amarrado em  popa, com uma passadeira de metal. Lembrei-me das feijoadas, dos bolos de aipim, do café torrado na hora: “é donzelo, tome logo”, ela dizia passando-me a xícara fumegando. “E o cafezinho, dona Antonieta, nunca me esqueci”. Ela sorriu entrando para a cozinha, “vou fazer um agora mesmo”. Dona Antonieta está meio-envelhecida, mais gorda ou mais magra, andar preparando-se para ficar lento, os olhos mostrando alguma perda do fulgurante. “Ah, meu filho, tempo bom era aquele!”

            A paisagem verde da fazenda, a curvatura do céu dimensionada com o tamanho do lugar, traziam-me recordações das festas de São João com fogueiras de tronco de jequitibá incendiando; fogos de artifício iluminando as capoeiras; churrasco, milho verde assado, canjica, caças, pescaria.

            Seu Raimundo, forte naquele tempo, era fogoso para tudo isso. Bom no tiro, não perdia uma paca, uma perdiz. Nas festas, todo animado de botinas lustrosas e gravata, forrozava com dona Antonieta, com a filha, com as moças da redondeza. Minha presença  eu sua casa era uma constância ; dava-me bem com toda a família, notadamente com Juanita que casou com o paulista, e com Emanuel que formou-se em medicina.

            À direita da casa existe ainda o curral pequeno, agora meio desmantelado, com um mourão no meio, apodrecendo. Lembrei-me do garrote caramuru, de mamilo grande pendido para um lado; da vaca Suana que dava dez litros de leite por dia. Em frente à casa, no terreiro, existe ainda o tamarindeiro, agora menos frondoso, a crosta rachada; embaixo dele, num desafio, o banco todo de madeira fincado no chão limpo entremeado de folhas secas, onde os moradores iam à tardinha para conversas íntimas; vacas leiteiras pastavam vigiadas pelo garrote mugindo e cheirando o vento, de focinho para cima. Nas noites de estio e de luar, encontros para uma prosa, contar estórias, fazer serenata.

            Almocei com seu Raimundo e passamos a tarde conversando sobre cacau, chuva, estiagem, pragas e outros assuntos interessantes para gente do campo. Ele me deu notícia de todos seus familiares distantes. Nosso diálogo, a momentos, desvanecia. A boquinha da noite vinha caindo quando nos despedimos. A represa em frente, como um painel cinza-escuro,  formava uma mancha no meio do gramado verdejante.

            Deixei seu Raimundo em pé, encostado ao gradil da varanda, enrolando um cigarro de palha.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia,  em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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