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domingo, 5 de agosto de 2018

JAVALIS SELVAGENS E HOMENS COMUNS - Ana Maria Machado


Dá para imaginar o que é isso? Ficar dias e dias na escuridão total, encolhido entre o declive de um chão de pedra e a proximidade de teto e paredes de rocha, cercado de água, sem saber se é dia ou noite. De início, dividindo com mais 12 pessoas a parca ração de uma merendazinha. Depois, sem ter o que comer. E sem saber se alguém lá fora tem noção do que se passa.

De repente, brota da água uma luz. Uma voz estranha diz algo num idioma que ninguém entende. Quase ninguém. Ainda bem que há um imigrante no grupo. Bendito imigrante, a confirmar que alguém diferente sempre tem algo a dar. É o único capaz de compreender e responder ao que o dono da voz diz em inglês. Assim o jovem time de futebol dos Javalis Selvagens sabe que era alvo de buscas, havia sido encontrado, e alguém lhes acenava com comida, remédios e o fiapo de esperança de uma operação complicadíssima para tentar salvar o grupo ilhado na escuridão das profundezas de uma caverna.

Ilhado até certo ponto. Homem algum é uma ilha, garantira um poeta nesse mesmo idioma inglês há quatro séculos. O mesmo John Donne que escrevera outras palavras que desde então têm lembrado a fraternidade, solidariedade e igualdade entre todos os seres humanos: “A morte de cada homem me diminui, pois sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

Dando provas de que essa noção ainda não se perdeu e continua viva na espécie humana, no exterior da caverna as pessoas faziam o que estavam a seu alcance: se mobilizavam, rezavam, montavam a lógica racional de uma incrível operação de resgate. Especialistas de outros países viajaram para a Tailândia e se associaram aos esforços locais, disciplinados e objetivos, sem perguntar o que ganhariam com isso ou de que etnia ou nacionalidade eram os prisioneiros da caverna. Técnicos anônimos e milionários conhecidos ofereceram o que podiam. E depois de semanas o planeta festejou o final feliz que parecia impossível naquela tragédia anunciada. Homens comuns a consagrar a humanidade comum de vítimas e heróis — incluindo o mergulhador que perdeu a própria vida na luta para salvar as dos outros. Vitória possível a partir do profundo sentimento da condição humana compartilhada. Todos homens comuns.

Impossível não contrastar essa consciência de destino comum com a pretensão de se distinguir do comum dos mortais, exibida com acinte e desenvoltura em uma operação de resgate montada do outro lado do mundo, num plantão judiciário de domingo, simultâneo às últimas horas do esforço coletivo heroico na Tailândia.

Mas talvez não devesse ser surpresa. O objetivo era soltar Lula, alguém que não é visto como homem comum. Aliás, já ele mesmo atestara que entende não haver essa natureza comum entre todos nós. Desde que, há tempos, consagrou a doutrina de dois pesos e duas medidas quando afirmou de outro ex-presidente: “O Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”, apesar de antes já ter se referido ao político maranhense com pesados insultos e ofensas.

Mais recentemente, o condenado em segunda instância, agora alvo da tentativa de libertação no domingo, fizera questão de frisar: “Eu não sou um ser humano, sou uma ideia”. Ideias não são encarceráveis. Todos sabemos (ou podemos imaginar com boa dose de realismo) que, mais cedo ou mais tarde, Lula será solto por algum indulto — como José Dirceu, condenado a mais de 30 anos, está solto. Não ficará preso muito tempo — como Cabral e Cunha, por exemplo, têm mais chance de ficar. A ideia que Lula encarna é mais poderosa que a destes, reveste-se do charme de uma narrativa de Cinderela ou Robin Hood, e tem mais seguidores escancarados. Embora também seja poderosíssima, a ideia encarnada por outros, de encher os bolsos quando ninguém está olhando, não se presta a defesas públicas, apoio de intelectuais, simpatia no exterior. Explicitada, choca pelo cinismo, não é temperada e resgatada pelo mito.

Por isso, no fundo dessa caverna curitibana em cujas paredes se projetam sombras míticas, dá para acusar o clarão vindo da realidade exterior. A culpa é da luz. Sem ela, não se veria o mal nem haveria sombras. Talvez até essa acusação possa colar. Ao menos em alguns setores, por algum tempo.

De qualquer modo, mesmo que não se possa enganar a todos durante todo o tempo, somos reféns da irresponsabilidade dos Três Poderes que aprisionam o país. Não há como fugir da máxima de Millôr Fernandes: o resultado é o que resultar. Para ele despencamos.

Ou dá para ter esperança de que brote das águas a cabeça de alguém comum, trazendo uma luz e falando uma língua que a maioria de nós não vai entender, mas que aceitaremos como um caminho para o resgate? Feito de racionalidade e disciplina.

Nesse caso, ainda precisaríamos fazer como os Javalis Selvagens : treinar o fôlego, aprender a nadar e mergulhar no desconhecido. Seremos capazes?

Haja coração, como nos repetiram à exaustão nos últimos dias.

O Globo, 21/07/2018

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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 2012 e 2013.

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