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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

INSÔNIA – Ariston Caldas

Insônia 

Mil aviões fizeram um “raid” sobre Londres, matando pessoas, destruindo pontes, ruas e praças. Seria verdade esse absurdo ou um exagero das agências  de notícias? Certo é que os nazistas abafavam o mundo. Na Europa dominavam uma série de países e entravam pelas estepes russas; esmagavam a França, e a Itália, sua aliada à força, gemia o peso da ocupação.

            Naqueles tempos nebulosos as pessoas passaram a aprender mais História e Geografia; nomes complicados andavam de boca em boca. Era o quitandeiro, o dono da padaria, o barbeiro da esquina, o povo na rua. Até os matutos vendendo coisas na feira, aos sábados. “é a guerra”, diziam. Sabia-se quem era o mandatário desse ou daquele país, o rei de uma nação obscura, o primeiro-ministro de uma potência ou general-de-campo que distinguia-se numa frente de batalha; o nome de uma ilha nos confins do mundo. 

            O alfaiate Possidônio, de cavanhaque e um colete ruivo espetado de alfinetes, pronunciava os nomes estrangeiros conforme permitia seu português: Rosevelte, Itler, Degaule, Marque Artur, Istalim. Quando qlguém o corrigia, ele falava, ufano: “Sou brasileiro, alfabetizado, e só falo meu idioma, certo é como digo:” À noitinha havia um noticiário pelo rádio, e a gente da vizinhança amoitava-se  em frente à casa de seu Ismael para ouvir as novidades da guerra; formavam-se opiniões, discutia-se. Dona Isolda, mulher de Ismael, de xale preto em volta do pescoço, ouvia tudo sentada numa cadeira de vime e, durante o informativo, benzia-se nem sei quantas vezes, o rosto triste; depois saía para o passeio onde ficava conversando com dona Zulmira que residia ao lado; “este mundo virou terra de cão”, dizia dona Zulmira retirando-se macia, arrastando uns chinelos de pano; aí dona Isolda entrava, apanhava um missal e sumia pelo quarto de dormir.

            Tempos de terror, mas teria um fim para a situação. Preparava-se a Segunda Frente pela Normandia e na União Soviética sucedia-se uma série de reveses às forças do Eixo. Iniciava-se  o fim do pesadelo.

            No telhado do meu quarto uma lagartixa anda para um lado, para outro; esqueço da guerra, da morte, de outros absurdos. Agarrada ao telhado, a qualquer instante a papuda poderá cair sobre o meu rosto; sinto náusea, arrepios a barriga branca, as costas rajadas; deve ser fria, as unhas arranhadas. Lembro de Tereza, quando ela via uma lagartixa, agarrava-se a mim, assustada, gritando. Onde andará Teresa? Tinha os seios pontudos, gostava de uma flor no cabelo.

            Essa história de contar carneirinho para espantar insônia não passa de uma lenda engraçada; contei mil e dois. Meus olhos estão secos, impaciência dos pés ao juízo, a boca amargando; meu pensamento voa inseguro por terras onde nunca andei, com pessoas perambulando à toa por caminhos desconhecidos, por superfícies de rios longínquos – Nilo, Mississipi, Volga, Tâmisa, Sena; atrelado a mãos afagantes, rondando, rondando para voltar depois ao quarto turvo opressivo com uma lagartixa andando pelo teto e ameaçando cair sobre meu rosto. Por instantes a guerra volta ao meu juízo, Londres arrasada, mil aviões roncando pelo céu, fogos cruzantes, estampidos gemendo, morte, desespero; um rádio transmitindo as notícias, dona Isolda benzendo-se na cadeira de vime, de chalé caindo sobre os ombros; o alfaiate  Possidônio dentro de um colete ruivo cheio de alfinetes; “Itler, Rosevelte, Degaule.” Tereza com medo de lagartixa, com um jasmim pregado no cabelo.

            Ouço agora, muito longe, a melodia de uma flauta, suave e sutil. São duas da madrugada, o universo é uma insônia avassaladora.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas

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