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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

CANÇÃO PARA ACORDAR JORGE AMADO - Heribaldo de Assis


AGOSTO DE JORGE AMADO:

Canção para acordar Jorge Amado 


O escritor Jorge Amado, prestes a completar 90 anos, dormia profundamente em sua cadeira de balanço – suas mãos pendiam... Nelas os dedos calejados por uma antiga máquina de escrever mecânica.

Mas, há algum tempo, o velho Jorge Amado não escrevia, devido a um problema na visão – uma Degeneração Macular que estava retirando-lhe até o ânimo de viver, pois o impossibilitava de dedicar-se a sua maior paixão: a Literatura!

Inconformados com aquela situação, as personagens de Jorge Amado resolveram então sair das páginas dos romances e das novelas para tentarem despertar o escritor e reanimá-lo a enveredar-se pelas páginas da Literatura novamente, mesmo que com o auxílio visual de sua eterna companheira Zélia Gattai.

Mas, para não ocupar muito espaço na sala da casa do Rio Vermelho em Salvador – Bahia, somente algumas personagens de Jorge Amado receberam a permissão de saírem do mundo da imaginação e realizarem a tarefa de acordar o desanimado e sonolento escritor.

Então Gabriela, Tiêta, Tereza Batista (cansada de guerra), Dona Flor (sem seus dois maridos), Perpétua, Cinira, Amorzinho, o Negro Damião e Sinhozinho Badaró abandonaram temporariamente as páginas dos romances e do mundo imaginário para acordarem Jorge Amado...

E, num átimo, aportaram magicamente diante do escritor que havia lhes dado o sopro da vida e concedido-lhes destinos, sonhos, ideais, alegrias e sofrimentos. Por alguns instantes contemplaram emudecidos as marcas visíveis que quase um século de dedicação à Literatura e à luta pela Liberdade haviam deixado no corpo alquebrado do escritor octogenário: os cabelos brancos de preocupação com a miséria social da Bahia, as rugas que simbolizavam o testemunho de todo um passado, os calos nas mãos que extenuaram-se nas teclas da máquina de escrever, as pálpebras cansadas das romanescas noites em claro.

Ele parecia estar sonhando – mas com o que sonhava Jorge Amado: com um país no qual as crianças tivessem acesso a uma educação pública e gratuita de qualidade (e assim, no futuro, se tornassem cidadãs ao invés de se tornarem capitães de areia) ? Ou sonhava com um país no qual cavaleiros da Esperança e da Justiça finalmente triunfassem sobre a corrupção, a miséria e a violência?

Sim! Esse era Jorge Faria Amado – o filho do senhor João Amado e Dona Lalu: o menino grapiúna que nasceu em Ferradas (distrito de Itabuna-BA) em 10 de agosto de 1912 e que começou a publicar seus primeiros romances (No país do carnaval, Cacau, Suor) a partir de 1931. Logo depois vieram outras obras: Jubiabá (1935); Mar Morto (1936); Capitães de Areia (1937); Terras do Sem-fim (1942); Gabriela, Cravo e Canela (1958), dentre outros títulos que venderam milhões de exemplares, foram traduzidos para 54 idiomas e adaptados para a televisão, o teatro e o cinema. Uma carreira literária que o levou a ser eleito pela Academia Brasileira de Letras em 1959 e indicado ao Prêmio Nobel de Literatura por três vezes.

Nisso as personagens começaram a confabular sobre a melhor maneira de acordar o escritor – o Negro Damião (que estava com um clavinote na mão), propôs logo dar um tiro para o ar:

- Assim ele vai acordar mais rápido. Disse o Negro Damião.

Perpétua se contrapôs:

- Tá doido homem?! Assim ele vai é acordar assustado.

Tieta, indiferente à discussão das outras personagens, aproximou-se do escritor e sussurrou-lhe sensualmente no ouvido:

- Jorge, acorda. Sou eu, sua cabritinha: béé, béé, béé!

Dona Flor teve uma ideia e propôs:

- Por que não chamamos meu marido Teodoro para tocar fagote: assim, ao invés de acordar com barulho, Jorge vai acordar é com uma bela canção.

Tereza Batista comentou:

- Somente nove personagens tiveram permissão de vir até aqui, por que é que não teve essa ideia antes? Assim viriam 10 personagens ao invés de nove – se fosse permitido é claro.

Nisso alguém surge, mas não era Teodoro, era Vadinho (o primeiro marido de Dona Flor) – que (num passe de mágica) adentrara a sala completamente nu. Cinira e Amorzinho começaram a gritar e quase desmaiaram ao verem a nudez desavergonhada do defunto que abandonou as páginas do romance Dona Flor e seus dois maridos sem nenhuma permissão. Subitamente Vadinho aproximou-se de Dona Flor (que distraidamente confabulava com Gabriela a respeito de doces e quitutes) e então Vadinho apalpou as volumosas nádegas de Dona Flor que, acostumada com aquele gesto impetuoso, foi logo dizendo sem voltar-se para trás:

- Vadinho, deixe de vadiagem: aqui não né!

Gabriela também o censurou:

- Estamos em uma missão importante seu Vadinho, olha o respeito!

Vadinho limitou-se a dar um sorriso debochado para as duas e após acenar para a sua amada Dona Flor resolveu abandonar o recinto – não sem antes balançar as partes íntimas diante de Cinira e Amorzinho que, não desmaiaram porque foram amparadas por Perpétua. E Perpétua ameaçou:

- Volte logo para sua estória homem senão eu te dou umas bordoadas com meu guarda-chuva!

E, apesar de estar se divertindo com tudo aquilo, Vadinho resolveu retornar para o mundo da ficção para não criar mais balbúrdia ainda na sala da casa do Rio Vermelho. Sinhozinho Badaró, impaciente com toda aquela situação, tentou acordar mais uma vez Jorge Amado, mas não obteve sucesso.

Por fim, Gabriela fez mais uma tentativa: colocou as mãos no ombro de Jorge Amado, sem querer suas mãos macias e graciosas deslizaram no peito do escritor – mas o coração estava parado!

Quase aos prantos Gabriela cravo e canela exclamou para as demais personagens:

- Nenhuma música no coração de Jorge! Nenhuma música no coração de Jorge!

Todas as personagens imediatamente aproximaram-se para examinar o corpo desfalecido do escritor: a testa fria, as mãos geladas, o coração parado.

Então lágrimas escorreram dos olhos tristes de suas filhas mais famosas: Dona Flor, Tieta, Tereza Batista e... Gabriela. As demais personagens também ficaram inconsoláveis: O Negro Damião (homem acostumado a ver muitas mortes) tentou disfarçar a tristeza, Cinira, Amorzinho e Perpétua se amparavam – umas nos braços das outras. Sinhozinho Badaró contemplou o chão para não ter que encarar aquela cena.Todas as personagens, ao redor do corpo inerte de Jorge Amado, ficaram cabisbaixas e, inconscientemente, fizeram mais do que um minuto de silêncio. E em silêncio era até possível ouvir o bramido do mar nas praias do bairro Rio Vermelho:

"É doce morrer no mar, nas águas verdes do mar.
É doce morrer no mar, nas águas verdes do mar."

Por fim, disse Perpétua:

- Não há mais o que fazer aqui: vamos embora!

Instantaneamente quase todas as personagens desapareceram no ar e retornaram às paginas dos romances que encantavam e entretinham milhões de leitores no mundo inteiro.

Somente Gabriela ficou na sala, diante de Jorge Amado – aquele que lhe concedera fama e notoriedade. E, em um último esforço, Gabriela aproximou-se do corpo sem vida de Jorge Amado (que continuava na imóvel cadeira de balanço), sentou-se em seu colo e encostando a cabeça no peito dele sussurrou em prantos:

- Acorda painho, acorda!

Embalando a cadeira de balanço com suas coxas grossas, Gabriela fez o corpo inerte de Jorge Amado movimentar-se pela última vez – como se o embalasse para dormir junto com ela... E por fim ela também dormiu e desapareceu para entrar no coração sem vida do velho escritor. Amante e amada, escritor e personagem, criador e criatura fundiram-se finalmente para encerrarem o capítulo final de um dos maiores e bem-sucedidos escritores da Literatura Brasileira! Muito longe dali, à meia-noite, um jagunço – montando em um cavalo também espectral – galopou velozmente pelas ruas de Itabuna e Ilhéus bradando fantasmagoricamente a anunciar:

- Coronel Jorge Amado morreu! Coronel Jorge Amado morreu! Coronel Jorge Amado morreu!

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Heribaldo de Assis – Escritor, Poeta, Filósofo, Compositor, Redator-publicitário e Licenciado em Letras pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.

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