Total de visualizações de página

domingo, 17 de junho de 2018

A NEGRA FLORÊNCIA – Ariston Caldas


            A negra Florência era a pessoa mais conhecida de cidade. Era estonteante e mexia com a vida de todas as criaturas – pedia comida pelas portas, entrava pelas casas sem pedir licença e enrabava os meninos; entre outras patacoadas assustantes, como borrar o rosto com batom e mijar no meio da rua, suspendendo a saia ensebada de lodo. Com todas essas mazelas era negra bonita de corpo e de cara, com pernas robustas e bem-feitas.
                                                      
            - Se não for estudar a lição, vou chamar sinhá Florência!

            Meu primeiro encontro com ela deu-se numa tarde ensolarada, numa praça que me parecia ampla, recoberta com bancos de areia. Eu vinha do centro da cidade acompanhando minha mãe atufada de embrulhos, meio cansada e nervosa. Eu, lhe atormentando o juízo, com um choro insolente, resmungando, blasfemando o peso de um pacote de açúcar nos meus ombros esmirrados. Quanto mais eu andava mais o percurso me parecia infinito, enquanto os bancos de areia me entulhavam os passos, parecendo que meus pés não saíam do lugar ou andavam para trás. Nem vislumbrava ainda as palmeiras próximas à minha casa nem as colinas peladas para as bandas do poente. Tudo isso acentuava  minha intolerância, a vontade de fugir do areal queimando como fogo, entrando por meus chinelos de couro cru finos como folhas de papelão. Transformado nesse trambolho crescia minha revolta contra minha mãe; ela seria culpada por meu suplício aguentando no lombo um pacote de cinco quilos, embaixo de um sol quente como brasa; sobre ondas de areia movediça dificultando meus passos, enchendo meus chinelos, triturando meus pés ameaçados por cãibras. Eu não reparava que minha mãe ainda ia muito mais sacrificada. A momentos ela perdia a paciência e gritava:

            - Anda ligeiro, menino!
            As advertências me deixavam mais irritado e minhas malcriações me chegavam à garganta.

            - Não quer andar depressa, não? Olhe sinhá Florência! – Acrescentou assustada, enquanto a negra, a passos largos, aproximava-se.

            Trajava uma saia longa, rodada e florida de vermelho, e nua da cintura para cima. Os seis duros da negra pareciam dois cones de pedra e os cabelos estavam eriçados como de porco espinho. Aproximando-se, ela abriu os braços, soltou uma risada esculhambada e deu para gritar nomes indecentes. Minha mãe, assustada, agarrou-me por um braço, subiu numa calçada e invadiu uma casa, enquanto a negra riscou atrás, rindo e xigando. O pacote de açúcar espatifou-se pelo chão. Minha mãe ainda pode fechar a porta, sentando-se depois num sofá de madeira, agitada e ofegante.

            - Esta negra é pior que o diabo! Credo em cruz! – exclamou. Momentos depois pude ver, pela fresta de uma janela, a negra tumultuando no outro lado da praça, arrodeada de gente e agarrada por dois soldados de polícia, ainda nua da cintura para cima.
  
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas

  
Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia,  em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

* * *         

Nenhum comentário:

Postar um comentário