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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O LENHADOR – Catulo da Paixão Cearense

O Lenhador



          Era uma vez... Meus meninos!
             Era uma vez!... Atenção!

         Eu vou contar-vos a história
         do lenhador do sertão.

          Guarde-a bem na memória,
          ou, antes, no coração.

Um lenhador derribava,
àtoa, sem precisão,
tudo quanto ele encontrava
que fosse vegetação.

          A sua pobre avozinha
          toda a noite e todo o dia,
          (mas sempre falando em vão...)
          sem se cansar, lhe dizia:
          “Meu filho!... Tem compaixão!
          “Respeita a imagem das árvores,
          “porque elas têm coração”.

E o lenhador chaboqueiro,
a rir-se, como um selvagem,
dizia que os seus conselhos
não passavam de bobagem.

          Assim, risonho, o malvado,
          acordando muito cedo,
          pegava do seu machado
          e levava o dia inteiro
          esfrangalhando o arvoredo.

          E a sua triste avozinha,
          sempre a chorar, mas em vão,
          a toda hora do dia,
          como quem faz oração,
          de joelhos, lhe repetia
          que tivesse compaixão
          da santidade das árvores,
          que têm alma e coração.

Pois bem:  nesse mesmo dia,
a soltar feros rugidos,
sem atender aos gemidos
da sua avó, da avozinha
centenária de janeiros,
o bruto, o bruto dos brutos,
derribou dois ingazeiros
carregadinhos de frutos.

E a sua avó, coitadinha,
que tantas mágoas já tinha,
piedosa, assim lhe falou:

          “Meu netinho: sê bondoso,
          “como foi teu santo avô!
          “por que foi que decepaste
          “aqueles dois ingazeiros,
          “dois amigos fraternais!
          “Vai pedir perdão, meu filho,
          “perdão para os teus pecados
          “aos dois troncos decepados
          “desses Cristos vegetais!”

D’uma feita, o criminoso,
cantando, jogou no chão
um pé de jacatirão,
tão moço e tão extremoso,
que, com fraternal carinho,
com carinho paternal,
guardava entre os seus verdores
o ninho de um cardeal.

E a velha, que não cansava
de aconselhar o impiedoso
naquele eterno estribilho,
ainda assim suplicava:

“Meu filho, meu pobre filho,
“Tuas ações são contadas
“pelo mal que tu fizeres!
“Respeita todas as árvores,
“que ainda mesmo agigantadas,
“são fracas, como as mulheres”.

          Doutra feita, o renegado,
          sem um tiquinho de dó,
          desgalhou a laranjeira
          da pobrezinha da avó,
          uma velha laranjeira,
          cujas flores enfeitaram,
          há meio século passado,
          seu vestido de noivado,
          quando ela e o morto adorado
          na igrejinha se casaram.

E a avó, sempre com o perdão,
sempre, sempre repetia:

“Tu mataste a laranjeira
“que há tempos já não floria!
“É debalde que eu te imploro!
“Eu sei que te imploro em vão!
“Mas, filho! Tem caridade!
“Tem um tico de piedade
“da pobre vegetação”.

Mas, qual!... Meus filhos! O homem
já não tinha coração!

Vede quanta perversão!

Do lado do capinzal,
lá, onde pastava o gado,
erguia-se um grande ipê,
que o avô tinha plantado
No tempo, em que ele podia
no seu roçado roçar,
depois de levar na roça
com a sua enxada a cavar,
debaixo daquela sombra,
nas horas quentes do dia,
vinha o velho descansar.

          Se era noite de luar,
          ali, num banco de pedra,
          com a viola conversando,
          o velho, já caducando,
          rasgava o peito a cantar.

Pois bem. Um  dia, o tinhoso,
a fera desnaturada,
o tirano dos tiranos,
quis destruir, as escolhas
aquela planta sagrada
aquele templo de folhas,
que tinha mais de cem anos.

Mas quando o rei das florestas,
aos golpes do seu machado,
já começava a pender,
o grande amaldiçoado
viu uns borbulhos de sangue
do tronco velho escorrer!!!...
sacudiu fora o machado,
e deu de perna a valer.

E foi correndo... Correndo!...

E os troncos que ia revendo
das plantas que decepou,
eram braços levantados
de uns homens, desenterrados,
a gritar: - Vai-te, impiedoso!...
- Vai-te embora, cão tinhoso!...
- Cão danado! Cão leproso!

- Foi Deus quem te castigou! –

E foi correndo...  correndo!...

Cada vez corria mais!...

Quis parar!... Olhou pra atrás!...

Mas vendo o ipê debruçado,
como um Cristo ensanguentado,
cada vez corria mais!!

Numa curva do caminho,
um pobre  velho ranchinho,
abandonado, avistou!

Quer ver se para e descansa,
e o ranchinho, por vingança,
todo inteiro desabou

          E foi correndo e gritando!...

          E toda a vegetação
          que o malvado ia encontrando
          e que mal podia ver,
          como se fosse arrancada
          com toda a raiz da terra,
          numa grande disparada,
          ia atrás dele a correr!!!

Na crista da encruzilhada
vendo uma gruta fechada
de verde capoangal,
barafustou pelo mato,
que, logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficou sendo um espinhal!!

          E foi outra vez correndo,
          correndo pelos caminhos!

O capim que ele pisava,
no mesmo instante ficava
crivado todo de espinhos!!

          Ia correndo,  sem tino,
          como um pérfido assassino,
          que um inocente matou!

Mas, agora, em sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacou?!

          Era um rio que passava
          ali, naquele lugar!
          O rio tinha uma ponte!...
          Ele foi atravessar!...

          Pôs o pé!... Ia passando!...
          E a ponte rangeu, quebrando!...
          E o homem cai, bracejando,
          na correnteza a boiar!

“Socorro, meu Deus! Socorro!”...
gritava, já se afogando!
“Socorro, que eu vou morrer!
“Eu juro pela avozinha,
“a mãe da minha mãezinha,
“nunca mais na minha vida
“uma só planta ofender!”

          Então, um verde ingazeiro,
          que estava à margem do rio,
           esticou-lhe um braço verde,
          para dar-lhe a salvação!

O homem pegou no galho,
os dentes no galho aferra,
foi subindo, foi subindo,
e quando pisou na terra,
chorava mais que um chorão!

Chorando e beijando o galho,
dizia: - “Muito obrigado!
“Deus te conserve, enfolhado,
“com todo viço e verdor!

          “Quero esquecer meu passado!...
          “Vou sepultar meu machado!
          “não serei mais lenhador!”

Pois bem. Depois do perdão
e daquelas juras santas
que fez ao velho ingazeiro,
veio a regeneração!

          O lenhador do sertão,
          para expurgar-se dos crimes,
          transformou-se em jardineiro!!

                                   *

          Deixando os matos agrestes,
          veio em caminho da roça!

          E, em breve, ao redor da choça,
          feita de barro e coberta
          de sapês hospitaleiros,
          só se viam, florescendo,
          canteiros e mais canteiros.

Levava os dias inteiros
tratando do seu jardim.

E a avó, que já carregava
mais de cem anos de idade,
dizia que neste mundo
nunca viu tanta bondade
e tanta pureza assim.

Depois do labor do dia,
nem mesmo as noites dormia!
Bastava o simples rumor
de um inseto zumbidor,
ou o cicio da aragem,
ciciando entre a folhagem,
para abrir a janelinha
da sua choupanazinha,
e escutando esses rumores
ficar ali, debruçado,
ouvindo a noite inteirinha
o meigo sonho das flores!

De manhã, de manhã cedo,
lá ia saber das rosas,
dos cravos, dos crisântemos,
das açucenas cheirosas,
se tinham dormido bem.

Tinha cuidado com as rosas
que as avós mais carinhosas
com os seus netinhos não têm.
Dizia a uma flor: “Bom dia!
“Como está hoje vermelha!”
Dizia a outra: “Coitada!
“Perdeu seu mel! Foi roubada!
“Minha flor!... Serás vingada!
“Hei de matar essa abelha!”

Depois, com mágoa... com pena
de uma formosa açucena,
que parece que chorava,
batia leve no galho
para livrá-la das lágrimas
daqueles pingos de orvalho!
Ia apanhando do chão,
A flor que no chão caía!
Nas rudes costas da mão,
limpando as flores d’agua
que vinham do coração,
batia em cima do peito,
como quem faz confissão


Quando o sino da capela
vibrava na Ave-Maria
as seis notas mensageiras,
(como o Cristo ajoelhado,
No jardim das Oliveiras),
o grande regenerado
pedia a Deus pelas almas
das flores que nesse dia
no jardim tinha enterrado.

*
          E agora, quando passava
          entre as árvores, cantando,
          cheios d’agua carregando
          seus dois grandes regadores,
          os arvoredos, mostrando
          que ao lenhador perdoavam,
          no jardineiro atiravam
          as suas palmas de flores!!!

No dia em que o lenhador,
que se tornou jardineiro,
rendeu sua alma ao Senhor,
diz o povo do lugar
que, quando foi a enterrar,
as borboletas voavam,
e os passarinhos, cantando,
o féretro acompanhavam!...
e os arvoredos e os matos,
por serem órfãos de flores,
reconhecidos e gratos,
por tamanha adoração,
ao doce gemer dos ventos,
agitavam-se, em lamentos,
atirando seus verdores
sobre as tábuas do caixão.

*

Quem, hoje, por alta noite,
nas horas de mais “quebranto”,
passa pelo Campo Santo,
velho, triste e abandonado,
vê um vulto pervagando
de campa em campa, regando
as flores do cemitério,
onde ele foi enterrado.


(POEMAS BRAVIOS)

Catulo da Paixão Cearense

* * *

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