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quarta-feira, 2 de agosto de 2017

10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO – O Amigo Jorge Amado, por Cyro de Mattos

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O Amigo Jorge Amado
Cyro de Mattos


            Conheci Jorge Amado nos idos de l959, em tarde de  autógrafos, na  antiga Livraria Civilização Brasileira, da rua Chile, Salvador. Na fila enorme dos que aguardavam a sua vez para receberem o autógrafo, eu lá estava, moço do interior, estudante da Faculdade de Direito  da UFBA. Estava nervoso. Vivia a expectativa de ver de perto o consagrado romancista baiano pela primeira vez. Quando chegou o momento de receber o  autógrafo de Jorge, aproximei-me com o exemplar de Gabriela, cravo e canela. E, timidamente, disse-lhe  que  era  grapiúna,  como ele vinha das terras ricas do cacau no Sul da Bahia. No mesmo instante da revelação do lugar de nascimento,  fez-se num  rosto largo e manso o sorriso alegre de quem acabava de ouvir algo que lhe tocava o coração. Com que prazer o autor de  Gabriela, cravo e canela  assinalou no livro ser  também grapiúna, das terras de Itabuna, das ricas plantações de cacau, do território onde uma saga havia sido forjada por homens rústicos  com suor, cobiça e morte.  Fazia assim com que eu sorrisse um belo sorriso e amasse ainda mais as minhas raízes grapiúnas.

            Seguia no rio da vida  e, em 1966, já no Rio de Janeiro,  publicava meu primeiro livro,  pequeno volume de contos, hoje riscado de minha  produção por ter envelhecido  o texto rapidamente.  Enviei o pequeno volume a Jorge Amado, seguindo conselho de um companheiro de geração, mas não esperando que viesse alguma opinião do autor de Terras do sem fim sobre o meu livro de estreia. Qual não foi a minha grata surpresa depois, por ver em curto espaço de tempo um livro de autor desconhecido  ser apresentado à  Academia Brasileira de Letras com palavras favoráveis do admirável romancista Jorge Amado.

            Outros livros meus vieram e foram merecedores de artigos com elogio por parte  de Jorge Amado. Não deixavam de ser opiniões sob a ótica impressionista,  mas  espontâneas,  o que interessava. Verdadeiras, simples e profundas, abonadas com a  sensibilidade de quem mais  conhece os caminhos do fazer literário na recriação da vida. E mais: ele  publicava os artigos que escrevia sobre aqueles livros em jornais importantes como A Tarde, Jornal de Letras (Rio), do saudoso Elysio Condé, Jornal do Comércio (Rio) e Suplemento Literário de Minas Gerais.

             Tais gestos do criador de Quincas Berro d’Água aconteceram também com outros escritores, alguns  emergentes, outros com obra em andamento ou consagrados, baianos ou não. O romancista João Ubaldo Ribeiro sabe do que falo  agora. E Guido Guerra, Sonia Coutinho, Florisvaldo Mattos, Ildásio Tavares, Hélio Pólvora, Jorge Medauar e Vasconcelos Maia.  Ele nunca atropelava, sempre enriquecia o companheiro de letras com suas opiniões, sem esperar nada em troca. Nada tomava na guerra neurótica, muitas vezes diabólica, que é a da literatura, infelizmente. Prefácios, orelhas, artigos, depoimentos, apresentações à Academia Brasileira de Letras, um legado literário da melhor qualidade em língua portuguesa sobre livros de nossos autores. Textos que,  se forem coligidos,  dariam   valiosos livros como uma importante contribuição à cultura  brasileira e ao corpo de nossas letras.

              Ao escrever sobre um dos meus livros destinados às crianças, artigo que foi publicado no jornal A Tarde, em forma de missiva dirigida ao romancista Josué Montelo, então presidente da Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado chegou ao ponto de  lembrar meu nome para fazer parte daquela tão importante instituição cultural. Houve exagero. Só mesmo Jorge, com o seu coração de mel de cacau,  alma com  ardor e verdor  de marinheiro baiano, onde habitava um sol com sua flor gigantesca,  podia distinguir meu nome de maneira tão  generosa, que comovia e servia como incentivo  para que eu continuasse em minha jornada de ser escritor.

              Exercia a amizade como uma coisa nata, tão dele. E nos mostrava sempre com os  gestos fraternos para o deleite doce e meigo dos dias  que com mãos nas mãos tudo fica mais claro. Com ele não entravam  no exercício da vida a intriga, a inveja e o despeito.

             Dava-me conta por isso que existia  ainda  o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida   o artista vaidoso como o homem.

            Dizia-se ateu, ele que era tão cristão porque terno, solidário, sincero: humaníssimo. E o contador de histórias? Você não escreveu nada sobre isso? Perguntou-me Mariza, minha esposa, para quem eu li trechos dessa crônica, cada vez que parava e buscava força para prosseguir, de tão estranho que achava a vida ter perdido esse raro amigo. Disse-lhe: você sabe mais do que eu. Fascinante, mágico, dramático, lírico. Ele dava dignidade aos excluídos. . Encantava  da primeira à última página através da  escrita sensual. Recriava a vida como poucos quando emprestava a palavra ao real e o ao sonho.

            Que coisa muito triste, a vida física de Jorge ter acabado. Tanta coisa, tanto caso, tanta verdade deixou  para o leitor espantar para longe o tempo ruim. Esse que nasceu numa pequena fazenda em Ferradas, que foi distrito e hoje é  bairro do município de Itabuna, passou a infância e juventude em Ilhéus para ser um bem-amado cidadão do mundo, em inacreditável peripécia porque assim devia ser.


(Do livro Um grapiúna em Frankfurt, crônicas, Dobra  Editorial, SP, 2013)




Cyro de Mattos - Ficcionista e poeta. Publicado em inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês, russo. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. É membro titular da Academia de Letras da Bahia,da Academia de Letras de Ilhéus e membro fundador da Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC.

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