- Então,
seu Arcanjo, como vai nosso timão? – perguntava-lhe o prefeito, mal acabando de
sentar-se na cadeira mais solene da barbearia.
- Aí,
excelência, como o senhor mesmo está vendo...
- Pois é,
agora botaram uma bicha como técnico, onde já se viu sem-vergonhice igual?
Depois soube que vão vender o Santinho pro Fluminense de Feira. Tem lá
precisão, seu Arcanjo, hein, me diga?
- Tem não,
excelência, nenhuma, uma terra rica como a nossa... Mas o técnico, eu soube que
o homem é cronista, colunista social, ou coisa parecida...
- O que
pra mim vem dar no mesmo, seu Arcanjo. Homem que anda metidinho em festinhas a
bajular madames, é tipo com serventia para dirigir time de homem? Pra mim é
bicha mesmo!
- Concordo
com Vossa Excelência. No meu pouco conhecer, sei logo quem tem razão... E Vossa
Excelência...
- E o time
é bom, seu Arcanjo, muito bom, isto é o pior de tudo. Temos o melhor goleiro da
Bahia, nosso ponta esquerda fez a melhor figura no campeonato, ou não fez?
- Tá muito
sem moral, senhor prefeito, sem moral, com esse técnico, o senhor mesmo sabe...
Todo mundo aí descontente, e logo o futebol, Excelência, o futebol, a alegria
do povo!
- É isso aí,
seu Juvenal alegria do povo! Povo precisa de alegria, de confiança. Com alegria
e confiança, tudo fica fácil de conquistar, só assim sei fazer política. Não
sou homem de viver tramando nem conspirando nos gabinetes!
- Muito
bem!...
- Pena que
a diretoria do time pertença à oposição. O Itabuna, seu Juvenal, se essa
diretoria estivesse comigo, no duro não ia ter técnico bicha, não. Mandava
buscar o Zagalo, ou o Cláudio Coutinho. Aí sim, queria ver... Queria ver jamais
perder eleição. Jamais perdi, não é? Ia mais longe, seu Arcanjo! Ia não, vou!
Ainda chego lá, a oposição vai ter muito que quebrar a cara comigo. Chego a
Senador da República, seu Arcanjo, a Senador!
- Apoiado!
Juvenal
escutava-o, orgulhoso da sua condição de confidente e barbeiro particular do
senhor prefeito. Já o era, antes que o homem enveredasse pela política, o que
aconteceu numa dessas reviravoltas que a vida dá, costumava dizer, mudando o
destino das pessoas, porque depois que enveredou e teve sucesso, prefeito por
duas vezes, eleito pelo voto popular, maciçamente, mostrou que não era homem de
abandonar amigos, trocar de companheiros, em tempo algum deixando de
solicitá-lo, a ele, humilde barbeiro, como profissional e confidente. Quando
estava muito atarefado e não podia ir à barbearia, distribuindo acenos, abraços
e apertos de mão pelo percurso, mandava buscar o barbeiro que o atendia lá
mesmo, no gabinete. Nestas ocasiões carregava numa maleta o instrumental
encomendado em Salvador, novíssimos e afiados instrumentos, só para uso de sua
excelência e, excepcionalmente, das cabeleiras mais ilustres da cidade.
Considerava-se um privilegiado quando dispunha de todo um tempo das atenções do
senhor prefeito (por longos momentos a tesoura cessando sem tac-tac, suspensa no ar, o pente fino de
chifre à espera do compasso da tesoura, erguidos ambos erguidos ambos nas
pontas dos dedos, como um maestro diante da sua orquestra, logo recomeçando o
tac-traquear elegante e caprichoso em torno daquela cabeleira).
Em outros
momentos, como durante a última campanha eleitoral, era impossível atende-lo na
barbearia, mas ele fazia questão de ser atendido lá mesmo, então Juvenal não
gozava de privacidade alguma, o povo invadia o salão da barbearia, todo mundo
querendo falar ao mesmo tempo; pedidos, declarações, convites, queixas,
converseiro, mexericos, abraços e apertos de mão, um inferno. No fundo ele
gostava, aumentara a sua popularidade, até aproveitava para distribuir uns
cartõezinhos. Lá fora, o povo amontoando-se nas calçadas, mais movimentado que
um dia de feira, o couro comia, um carnaval:
“Pisa na
fulô, oi pisa na fulô,
Pisa na
fulô que o Alcantra já ganhou!”
E o homem
não perdia vez de contentar o povaréu humilde, com umas artimanhas súbitas,
umas tiradas inspiradas, empinava-se na cadeira, sem ligar pra barba ou cabelo,
corte por terminar, ou ia até a ponta da calçada, para dar seu brado de guerra:
“Povo
vencedor, sabe o que quer,
essa
ganhamos de colher!
Vai ser de
colher, vamos ganhar,
é só
apostar, quem quiser!”
Não
precisava identificar rostos, aquele povo era essa mesma gente triste agora, e,
acompanhando-o, também caminhava triste, subindo a ladeira do cemitério.
Assustou-se com aquelas vivas inesperadas, mas logo compreendeu a razão. Podia
ver, na ampla varanda, o doutor Osmundo Teixeira, duas vezes candidato a
prefeito, duas vezes derrotado nas urnas. Claro que não ia demonstrar alegria
naquele momento, afinal a morte limpara-lhe o caminho, não iria se
incompatibilizar com o povo. Havia o padre Nestor Caminha, um certo Mimia,
agente funerário, estes há anos candidatavam-se, mas sem nenhuma chance, o povo
poderia preferir um desses dois, ou outro qualquer, se tivesse com isso de
responder alguma provocação do doutor Osmundo. Mas não parecia disposto a
cometer nenhuma burrice, ao contrário, estaria até disposto a responder com um
viva, também ou derramar uma lágrima... Mas por dentro, Juvenal seria capaz de
apostar, estaria cantando de felicidade, agora não teria de enfrentar ninguém
mais à altura do falecido, ninguém que não pudesse derrotar nas próximas
eleições.
- Com todo
respeito, vai ser muito difícil, doutor Osmundo, seu Alcântara perder pro senhor. Ele mesmo
disse que ganha, de colher. No meu pouco entender, ele sabe convencer o povo,
doutor.
- Ora, o
povo, Juvenal, o povo só quer saber de futebol e carnaval! Respondia-lhe doutor
Osmundo, que andara arriscando umas chegadas até a barbearia, naquele
fingimento de querer cortar cabelo com ele, quando todos sabiam muito bem que
era cliente antigo do seu Álvaro do Salão Universal. Vinha ali bisbilhotar, esperando
aproveitar-se da humildade dele, fazer intriga, colher indiscrições, que não
cometeria. “Tou acordado, para esse doutor”, pensava, muitas vezes.
- Viu só o
que ele fez, o seu prefeito, a última dele? Qual o benefício para uma comunidade
mandar pintar os postes de concreto da cidade. Hein, seu Juvenal? Me diga se
com essa não perdeu até mesmo seu voto? A Bahia inteira deve estar rindo dessa
maluquice, pintar postes, onde já se viu?
Depois ia
contar tudo a sua excelência, que o escutava em silêncio, comovido com a
fidelidade demonstrada.
- Anda
espalhando que as tintas foram de um estoque encalhado da firma do seu Juca,
que sua excelência comprou porque devia ao homem o apoio dele nas eleições. Vai
provar que foram compradas pelo dobro do preço, ainda por cima, excelência, ele
mesmo me disse!
Então o
prefeito gargalhava, uma gargalhada estrondosa, chegando a engasgar e o peito
ficava cheio de ruídos, Juvenal ficava meio arrependido e com medo do homem estourar,
ali mesmo, na sua cadeira, tão vermelho se tornava. Agora o acompanhava pela
derradeira vez: “e que morte tão estúpida, essa!...”
(ROTEIRO PARA UMA TEMPESTADE)
Ricardo Cruz
Da Antologia ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES
Seleção, Prefácio e Notas de Cyro de Mattos
Seleção, Prefácio e Notas de Cyro de Mattos
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RICARDO CRUZ – Nasceu em Salvador, a 26 de janeiro de 1941,
mas viveu com a família em Itabuna até os dezenove anos, mantendo até hoje
fortes laços com a região que habita a sua infância e adolescência. Diplomado
em medicina pela Universidade Federal da Bahia. Fez parte da “Geração Revista
da Bahia”, ao lado de Marcos Santarrita, Cyro de Mattos, Oleone Coelho Fontes,
Ildásio Tavares e outros. Participa das antologias “Doze Contistas da Bahia”,
“4 Histórias do Mercado Modelo”, “Moderno Conto da Região do Cacau” e “Novos
Contos da Região Cacaueira”. Seu conto “O Réprobo” foi incluído na coletânea “K
Iúgu of Rio Grande”, de narradores latino-americanos, em tradução de Helena
Riánsova, publicada em Moscou, da qual participam, entre outros, Rosário
Castellanos, René Marques, Julio Cortázar e Cyro de Mattos.
Em “Roteiro para Uma Tempestade”, contos, 1985, Ricardo
Cruz, com um estilo envolvente não esconde a sua intenção de ser testemunha
desta vasto mural que é o mundo. É um ficcionista social, político no melhor
sentido, picaresco, fantástico e surrealista. Alguns de seus contos nesse livro
acontecem no sul da Bahia, “O Dia em que o praça Ribeiro Deteve o Avanço Alemão
sobre a Ponte do Rio Cachoeira”, “A Ressurreição de Uma Excelência” e “A Gaiola
Indomada”.
A narrativa desenvolta demonstra que a temática da
civilização cacaueira na Bahia, em seus aspectos urbanos e rurais, tem um novo
ficcionista, com a sua feição própria e seu ritmo. “Benditos Perversos”,
contos, 1989, em que o ficcionismo agora erótico surge das relações cúmplices
no cotidiano da existência, trazem essas marcas dramáticas e trágicas, que só
um autor talentoso na sua escritura legítima pode conseguir.
(Cyro de Mattos)
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