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quarta-feira, 5 de julho de 2017

A MORTE DE UMA EXCELÊNCIA – Ricardo Cruz

A morte de uma Excelência


            - Então, seu Arcanjo, como vai nosso timão? – perguntava-lhe o prefeito, mal acabando de sentar-se na cadeira mais solene da barbearia.

            - Aí, excelência, como o senhor mesmo está vendo...

            - Pois é, agora botaram uma bicha como técnico, onde já se viu sem-vergonhice igual? Depois soube que vão vender o Santinho pro Fluminense de Feira. Tem lá precisão, seu Arcanjo, hein, me diga?

            - Tem não, excelência, nenhuma, uma terra rica como a nossa... Mas o técnico, eu soube que o homem é cronista, colunista social, ou coisa parecida...

            - O que pra mim vem dar no mesmo, seu Arcanjo. Homem que anda metidinho em festinhas a bajular madames, é tipo com serventia para dirigir time de homem? Pra mim é bicha mesmo!

            - Concordo com Vossa Excelência. No meu pouco conhecer, sei logo quem tem razão... E Vossa Excelência...
            - E o time é bom, seu Arcanjo, muito bom, isto é o pior de tudo. Temos o melhor goleiro da Bahia, nosso ponta esquerda fez a melhor figura no campeonato, ou não fez?

            - Tá muito sem moral, senhor prefeito, sem moral, com esse técnico, o senhor mesmo sabe... Todo mundo aí descontente, e logo o futebol, Excelência, o futebol, a alegria do povo!

          - É isso aí, seu Juvenal alegria do povo! Povo precisa de alegria, de confiança. Com alegria e confiança, tudo fica fácil de conquistar, só assim sei fazer política. Não sou homem de viver tramando nem conspirando nos gabinetes!

            - Muito bem!...

            - Pena que a diretoria do time pertença à oposição. O Itabuna, seu Juvenal, se essa diretoria estivesse comigo, no duro não ia ter técnico bicha, não. Mandava buscar o Zagalo, ou o Cláudio Coutinho. Aí sim, queria ver... Queria ver jamais perder eleição. Jamais perdi, não é? Ia mais longe, seu Arcanjo! Ia não, vou! Ainda chego lá, a oposição vai ter muito que quebrar a cara comigo. Chego a Senador da República, seu Arcanjo, a Senador!

          - Apoiado!

            Juvenal escutava-o, orgulhoso da sua condição de confidente e barbeiro particular do senhor prefeito. Já o era, antes que o homem enveredasse pela política, o que aconteceu numa dessas reviravoltas que a vida dá, costumava dizer, mudando o destino das pessoas, porque depois que enveredou e teve sucesso, prefeito por duas vezes, eleito pelo voto popular, maciçamente, mostrou que não era homem de abandonar amigos, trocar de companheiros, em tempo algum deixando de solicitá-lo, a ele, humilde barbeiro, como profissional e confidente. Quando estava muito atarefado e não podia ir à barbearia, distribuindo acenos, abraços e apertos de mão pelo percurso, mandava buscar o barbeiro que o atendia lá mesmo, no gabinete. Nestas ocasiões carregava numa maleta o instrumental encomendado em Salvador, novíssimos e afiados instrumentos, só para uso de sua excelência e, excepcionalmente, das cabeleiras mais ilustres da cidade. Considerava-se um privilegiado quando dispunha de todo um tempo das atenções do senhor prefeito (por longos momentos a tesoura cessando sem  tac-tac, suspensa no ar, o pente fino de chifre à espera do compasso da tesoura, erguidos ambos erguidos ambos nas pontas dos dedos, como um maestro diante da sua orquestra, logo recomeçando o tac-traquear elegante e caprichoso em torno daquela cabeleira).

            Em outros momentos, como durante a última campanha eleitoral, era impossível atende-lo na barbearia, mas ele fazia questão de ser atendido lá mesmo, então Juvenal não gozava de privacidade alguma, o povo invadia o salão da barbearia, todo mundo querendo falar ao mesmo tempo; pedidos, declarações, convites, queixas, converseiro, mexericos, abraços e apertos de mão, um inferno. No fundo ele gostava, aumentara a sua popularidade, até aproveitava para distribuir uns cartõezinhos. Lá fora, o povo amontoando-se nas calçadas, mais movimentado que um dia de feira, o couro comia, um carnaval:

            “Pisa na fulô, oi pisa na fulô,
            Pisa na fulô que o Alcantra já ganhou!”

            E o homem não perdia vez de contentar o povaréu humilde, com umas artimanhas súbitas, umas tiradas inspiradas, empinava-se na cadeira, sem ligar pra barba ou cabelo, corte por terminar, ou ia até a ponta da calçada, para dar seu brado de guerra:

            “Povo vencedor, sabe o que quer,
            essa ganhamos de colher!
            Vai ser de colher, vamos ganhar,
            é só apostar, quem quiser!”

            Não precisava identificar rostos, aquele povo era essa mesma gente triste agora, e, acompanhando-o, também caminhava triste, subindo a ladeira do cemitério. Assustou-se com aquelas vivas inesperadas, mas logo compreendeu a razão. Podia ver, na ampla varanda, o doutor Osmundo Teixeira, duas vezes candidato a prefeito, duas vezes derrotado nas urnas. Claro que não ia demonstrar alegria naquele momento, afinal a morte limpara-lhe o caminho, não iria se incompatibilizar com o povo. Havia o padre Nestor Caminha, um certo Mimia, agente funerário, estes há anos candidatavam-se, mas sem nenhuma chance, o povo poderia preferir um desses dois, ou outro qualquer, se tivesse com isso de responder alguma provocação do doutor Osmundo. Mas não parecia disposto a cometer nenhuma burrice, ao contrário, estaria até disposto a responder com um viva, também ou derramar uma lágrima... Mas por dentro, Juvenal seria capaz de apostar, estaria cantando de felicidade, agora não teria de enfrentar ninguém mais à altura do falecido, ninguém que não pudesse derrotar nas próximas eleições.

            - Com todo respeito, vai ser muito difícil, doutor Osmundo,  seu Alcântara perder pro senhor. Ele mesmo disse que ganha, de colher. No meu pouco entender, ele sabe convencer o povo, doutor.

            - Ora, o povo, Juvenal, o povo só quer saber de futebol e carnaval! Respondia-lhe doutor Osmundo, que andara arriscando umas chegadas até a barbearia, naquele fingimento de querer cortar cabelo com ele, quando todos sabiam muito bem que era cliente antigo do seu Álvaro do Salão Universal. Vinha ali bisbilhotar, esperando aproveitar-se da humildade dele, fazer intriga, colher indiscrições, que não cometeria. “Tou acordado, para esse doutor”, pensava, muitas vezes.

            - Viu só o que ele fez, o seu prefeito, a última dele? Qual o benefício para uma comunidade mandar pintar os postes de concreto da cidade. Hein, seu Juvenal? Me diga se com essa não perdeu até mesmo seu voto? A Bahia inteira deve estar rindo dessa maluquice, pintar postes, onde já se viu?

            Depois ia contar tudo a sua excelência, que o escutava em silêncio, comovido com a fidelidade demonstrada.

            - Anda espalhando que as tintas foram de um estoque encalhado da firma do seu Juca, que sua excelência comprou porque devia ao homem o apoio dele nas eleições. Vai provar que foram compradas pelo dobro do preço, ainda por cima, excelência, ele mesmo me disse!

            Então o prefeito gargalhava, uma gargalhada estrondosa, chegando a engasgar e o peito ficava cheio de ruídos, Juvenal ficava meio arrependido e com medo do homem estourar, ali mesmo, na sua cadeira, tão vermelho se tornava. Agora o acompanhava pela derradeira vez: “e que morte tão estúpida, essa!...”

(ROTEIRO PARA UMA TEMPESTADE)
Ricardo Cruz
Da Antologia ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES
Seleção, Prefácio e Notas de Cyro de Mattos

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RICARDO CRUZ – Nasceu em Salvador, a 26 de janeiro de 1941, mas viveu com a família em Itabuna até os dezenove anos, mantendo até hoje fortes laços com a região que habita a sua infância e adolescência. Diplomado em medicina pela Universidade Federal da Bahia. Fez parte da “Geração Revista da Bahia”, ao lado de Marcos Santarrita, Cyro de Mattos, Oleone Coelho Fontes, Ildásio Tavares e outros. Participa das antologias “Doze Contistas da Bahia”, “4 Histórias do Mercado Modelo”, “Moderno Conto da Região do Cacau” e “Novos Contos da Região Cacaueira”. Seu conto “O Réprobo” foi incluído na coletânea “K Iúgu of Rio Grande”, de narradores latino-americanos, em tradução de Helena Riánsova, publicada em Moscou, da qual participam, entre outros, Rosário Castellanos, René Marques, Julio Cortázar e Cyro de Mattos.
Em “Roteiro para Uma Tempestade”, contos, 1985, Ricardo Cruz, com um estilo envolvente não esconde a sua intenção de ser testemunha desta vasto mural que é o mundo. É um ficcionista social, político no melhor sentido, picaresco, fantástico e surrealista. Alguns de seus contos nesse livro acontecem no sul da Bahia, “O Dia em que o praça Ribeiro Deteve o Avanço Alemão sobre a Ponte do Rio Cachoeira”, “A Ressurreição de Uma Excelência” e “A Gaiola Indomada”.
A narrativa desenvolta demonstra que a temática da civilização cacaueira na Bahia, em seus aspectos urbanos e rurais, tem um novo ficcionista, com a sua feição própria e seu ritmo. “Benditos Perversos”, contos, 1989, em que o ficcionismo agora erótico surge das relações cúmplices no cotidiano da existência, trazem essas marcas dramáticas e trágicas, que só um autor talentoso na sua escritura legítima pode conseguir.
(Cyro de Mattos) 



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