Total de visualizações de página

segunda-feira, 19 de junho de 2017

JUNHO - MÊS DE MACHADO DE ASSIS (XII)

Reflexos


Vou rio abaixo vogando
No meu batel e ao luar;
Nas claras águas fitando,
Fitando o olhar.

Das águas vejo no fundo,
Como por um branco véu
Intenso, calmo, profundo,
O azul do céu.

Nuvem que no céu flutua,
Flutua n'água também;
Se a lua cobre, à outra lua
Cobri-la vem.

Da amante que me extasia,
Assim, na ardente paixão,
As raras graças copia
Meu coração.

  
(Machado de Assis)


==== 
Wilson Martins

História interessantíssima

29.05.2004




          Machado de Assis leu, com certeza, Octave Feuillet e Gustave Flaubert, Balzac e Zola, mas, enquanto romancista, sua pátria espiritual era a Inglaterra, “o país do romance”, como a denominou Edmond Jaloux, insuspeito por ser francês. Isso contrariava as expectativas por assim dizer automáticas do leitor brasileiro oitocentista, desorientando boa parte dos críticos, muitos não sabendo o que fazer com aquele corpo estranho que, a partir de “Ressurreição” (1872), caía-lhes de repente sobre a mesa e as idéias feitas. É história interessantíssima, como diria José Dias, ordenada por Ubiratan Machado em livro igualmente interessantíssimo (“Machado de Assis: roteiro da consagração”. Crítica em vida do autor. Rio: EdUERJ, 2003).

          Era romancista vitoriano, oposto, por temperamento, à libertinagem literária do século anterior, supremo artista da litotes no vocabulário e no desenvolvimento narrativo. Adotando no “Brás Cubas” algumas inovações técnicas de Sterne, ele mesmo desencaminhou os críticos de leitura superficial e apressada, que passaram mecanicamente a encará-lo, não como “humorista” autêntico e nativo, mas, nas palavras de Sílvio Romero, como “uma imitação, aliás pouco hábil, de vários autores ingleses”. Não sendo inglês, não podia ser “humorista”, pela simples razão de que o humour (como então se escrevia) é uma secreção orgânica específica da “raça inglesa”, tese defendida num clássico dos estudos machadianos. Ou, ainda no gracioso julgamento de Sílvio Romero: “O humour de Machado de Assis é um pacato diretor de secretaria de Estado e o horrível de seus livros é uma espécie de burguês prazenteiro, condecorado com a comenda da Rosa... (...) O temperamento, a psicologia do notável brasileiro não são os mais próprios para produzir o humour , essa particularíssima feição da índole de certos povos. Nossa raça em geral é incapaz de o produzir espontaneamente”. Ora, o primeiro erro dessa leitura está, precisamente, na suposição todo arbitrária de encará-lo como humorista, o que não é em nenhum dos seus livros, sem excluir o “Brás Cubas”. Os que o afirmam leram-no de afogadilho, saltando páginas à procura de curiosidades tipográficas, sem realmente entender o que estavam lendo. A questão foi colocada por Oliveira Lima em gabarito intelectual mais elevado:

          “É possível que Machado de Assis tenha experimentado a influência de Sterne ou de Swift. Ele admira os bons modelos e preza os antigos como todo homem dado às letras, mas a razão da sua delicadeza parece-me antes estar em que o seu temperamento corresponde ao dos citados autores do século XVII, em que a sua característica urbanidade tão pessoal e imudável, condiz com aquela ironia flagelada mais do que flageladora, com aquela que, se não era ainda dolorosa, já era humana e tinha a refreá-la o respeito das normas, que o romantismo se aprouve em destroçar”.

          Para a “voracidade insaciável dos leitores de língua inglesa”, escreve Jorge de Sena, a leitura de romances substituía a oratória do púlpito ou parlamentar: o romance tornou-se, acima de tudo, um veículo para o conhecimento do homem, uma lição moral, não só pelo que pudesse ter de proveito e exemplo, mas, ainda, como estudo da condição humana e suas paixões, não em abstrato, mas integrada na vida social. A complexidade da intriga, as múltiplas linhas narrativas que se cruzam, a variedade e o antagonismo dos caracteres, tudo devia transmitir a sensação do mundo real.

          É fácil perceber a similaridade de concepção e trama narrativa entre “Iaiá Garcia”, que é de 1878, e “Middlemarch”, de George Eliot, publicado sete anos antes, romance que, “pela amplidão da estrutura, a perspicácia das análises, a problemática complexa, o dramatismo da ação, a serenidade da narrativa, a dignidade intelectual, a consciência do tempo agindo sobre as vidas das personagens”, é, não só “o mais ambicioso dos romances vitorianos” (Jorge de Sena), mas o protótipo de todos eles. Descrição que se pode aplicar, ponto por ponto, a “Iaiá Garcia”, romance geralmente subestimado sob a alegação todo fantasiosa de ser o último de uma suposta “primeira fase”.

          A aceitar tal dicotomia, romance de soberba maturidade intelectual, será, antes, o primeiro da série magistral que terá prosseguimento, justamente, com “Brás Cubas”, romance irônico, este, que se desdobrou em romance dramático. Ao lado de “Dom Casmurro”, que requer leitores amadurecidos e cultos, “Iaiá Garcia” será, dos livros de Machado de Assis, o mais exposto às tresleituras, iniciadas, já no lançamento, com o artigo de Urbano Duarte: “Foi-se também ‘Iaiá Garcia’, e tão desenxabida como no dia em que nasceu. Inda estamos por saber que tese quis o autor desenvolver em seu livro, sendo fora de dúvida que ele quis ali desenvolver qualquer tese. Tratamos de descobrir o fito do pensador em meio daquele langoroso idílio e chegamos à conclusão final de que a sua era uma tese garciológica ”.

          Claro, José Veríssimo situava-se acima dessa indigência mental: “‘Iaiá Garcia’, como ‘Ressurreição’ e ‘Helena’, é um romance romanesco, talvez o mais romanesco dos que escreveu o autor. Não só o mais romanesco, como talvez o mais emotivo. Nos livros que se lhe seguiram, é fácil notar como a emoção é, diríeis, sistematicamente realçada pela ironia dolorosa do sentimento realista de um desabusado”. Veríssimo percebeu por instinto de leitor familiarizado com “homens e coisas estrangeiras”, que “Iaiá Garcia” era um romance vitoriano — até o protagonista Jorge tinha “um nome romanesco”, nome de harmônicas inglesas mais do que evidentes.

          Formados na escola descritiva de Alencar, os leitores da época, sem excluir os melhores, viram-se, de repente, em face de uma nova concepção do romance, custando a reconhecê-la e, mais ainda, a aceitá-la. Caberia a Capistrano de Abreu refletir a perplexidade geral diante do exemplo mais desafiador: “As ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ serão um romance? Em todo o caso são mais alguma coisa”. Essa “coisa” exigia simplesmente um novo tipo de leitor, o leitor para quem a literatura existe nela mesma, sem considerações de qualquer outra ordem. Com corrosiva ironia, Machado de Assis encarregou o finado Brás Cubas de responder “que sim e que não”: era e continua sendo romance para uns, não o sendo para outros. Em Machado, a ambiguidade era a forma específica de afirmação: pede-se aos espíritos de geometria que se abstenham.



* * * 

Nenhum comentário:

Postar um comentário