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domingo, 25 de junho de 2017

A FILHA DO COMENDADOR – Ariston Caldas

A filha do comendador


            Antônio teve a ideia de pedir trabalho a Berenice, principalmente um cômodo para dormir. Ele podia fazer limpeza na casa, dar uma ajeitada vez em quando no jardim da frente, fazer mandado,  nem ia exigir o quanto ganharia, qualquer trocado para cigarro, para uma cachacinha.

            Mentira que ele nunca trabalhou, desde menino já enrolava a vida num colégio público onde nem chegou a passar dois anos entre filadas e outras sem-vergonhices; nem chegou a concluir o primário.

            Filho de um jardineiro, tinha lá algumas noções sobre rosas,  orquídeas e girassóis; sobre outras plantas de jardim. Só noções. Na unha mesmo nem arredar uma palha.

            Arranhava mais ou menos um violão pelas noites de vadiagem. “Vou falar com Berenice”. Foram colegas no primário. Muita diferença entre os dois, a partir dos teres; ela filha de comendador, homem rico, doutor honoris causa, dono de bom patrimônio em imóveis e rurais. Ela perdeu o pai ainda mocinha, mas o venerava num quadro pendurado na parede do quarto grande, com bigode de pontas curvas, respeitável; gravata de lacinho, lenço branco bem dobrado no bolsinho de cima do jaquetão de bom talhe. Lembrava da mãe reverenciando-o, toda boquinha da noite, com preces, uma vela acesa. “Coitada, morreu poucos anos depois”.

            Berenice envelhecia. Sozinha, virgem, no mesmo casarão onde nascera. Oito quartos, mobiliada, cheia de lustres, de cristais; família grande, quatro filhos, a mãe, o comendador, agregados, parentes, visitas de amigos diariamente. O pai morreu, a mãe, também; os irmãos se casaram e foram para longe; os agregados também sumiram.

            Não apareceu nenhum homem rico. Berenice foi ficando sozinha, nostálgica; distraía-se com o piano que ficava na biblioteca; nem aprendera lá essas coisas de música, um pouquinho além das notas que tivera nas aulas quando usava duas tranças caídas sobre os ombros, anel de brilhante, pulseira de ouro, volta cravejada, relógio dourado e uns brincos como derradeiro presente do comendador.

            Nunca tivera namorado, sempre vigiada; homem rico disponível nem havia no lugar; a mãe era pedante, exigente, dera-lhe educação repelida, quase enclausurada; para o colégio, para a missa, aulas de piano, acompanhada, olhares atravessados, vigilantes.

            Agora, vez em quando, da janela, via Antônio passando de cabeça baixa, humilde, violão a tiracolo, roupa suja, tamancos de pau. O sabia chamar-se Antônio. “De quê?  Da Silva, de Souza?” Nem se lembrava, fora seu colega no primário.

            Ele fez a proposta e ela aceitou com algumas exigências: “você só vai lá em cima se eu chamar”. Ele concordou, com a cabeça; arriou a trouxa e sentou-se numa cadeira a um canto do quarto meio-empoirado. Berenice deu-lhe a chave da porta e subiu pela escada curva que tinha um corrimão preto e lustroso. Cuidou depois de coisas de rotina, comeu e foi dar umas tecladas no piano; sentiu sono. “Será que ele está com fome?” Panhou um pedaço de bolo, um bule com leite e desceu pela escada; bateu na porta do quarto; “olhe, eu trouxe para você”. Antônio desenhou um risinho acanhado e recebeu a comida.

            E daí por diante, foi assim: café pela manhã, almoço, refeição à noite. Berenice assuntava, calada. “amanhã você vai comer lá em cima”. Ele foi continuou indo durante três semanas. Comia, depois descia e ficava até às tantas tocando violão, quando não saía para a rua.

            Berenice sentia quando ele saía e quando vinha voltando, pelo silêncio, pelo som do violão, longe. “É ele”. Depois, o ruído da fechadura, os bulícios pelo quarto, o silêncio. “se ele aparecesse agora!” Imaginou a cara de Antônio espiando pelo gradil da porta, olhos assustados atravessando; sentia sustenidos de violão distantes, morrendo pelo silêncio; depois parecia ouvir pisadas pela escada, degrau por degrau, macias, cautelosas;  olhava para o retrato do comendador pendurado na parede, austero, de gravata com lacinho.

            O piano ficava na sala vizinha onde havia uma estante cheia de livros, coleções com lombadas cor de ouro. Olhava para o gradil da porta através de um espelho ovalado de cornijas pretas; fecharia o gradil, mas aí lembrou que a noite estava quente; por ele entrava um vento agradável passando pelo corredor. Os olhos tornavam a espiar, fugindo, chegando.

            Três pancadas na porta quase imperceptíveis. Teria sido na porta os ruídos vindos da rua que era deserta àquelas horas? Bateram novamente.

            Seria ele, ousado, desconfiado, cheio de desejo. “Se bater outra vez eu grito”. Bateu, ela não gritou. Fez foi levantar-se, abrir a porta, um tanto apreensiva. Era ele, pasmo, calado como estátua.

            Entrou, sentou-se na cama, pôs as mãos espalmadas sobre o rosto; depois tirou as calças e deitou-se, como se a cama fosse dele. Ela, silenciosa, deitou-se também e entrelaçou-se a ele, ofegante, nervosa. Passou a noite abraçada, sentindo cheiro de sujo,  um respirar quente como fogo; unhas lhe arranhando as costas, os seios. As partes doendo. Ele repetia toda noite, calado, gostando.

            Depois de três semanas ela mandou Antônio embora. “Você vai hoje”. Ele não disse nada e saiu porta a fora, calado,  violão a tiracolo.

            Três meses depois Berenice estava com a barriga enorme e quando ia deitar-se  parecia ouvir sustenidos de violão perdendo-se pela noite, entrando pelo gradil do quarto onde havia o retrato do comendador pendurado na parede. Parecia ouvir pancadas leves na porta. Três pancadas.

            Afagava a barriga avolumada e pegava no sono, esquecendo Antônio que nem sabia se de Souza ou da Silva.


(LINHAS INTERCALADAS)

Ariston Caldas

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