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terça-feira, 9 de maio de 2017

O ADVOGADO RAIMUNDO LIMA - Waly de Oliveira Lima


O Advogado Raimundo Lima


          O advogado Raymundo Lima era um capeta na tribuna do júri popular. O terror dos promotores. Criativo, improvisador, popular, palavra fácil, imaginação fértil. Às vezes enérgico, mas sempre respeitoso.
 
          Réu carente não sentava no banco sem o seu patrocínio gratuito.'

          Naquele dia, ele, os criminalistas Alberto Galvão, Adélcio Benício e Fernando Henrique, todos Itabunenses, defendiam um criminoso abonado, que matara a mulher por alegado ciúme.

          A sessão do júri estava sendo irradiada por uma das emissoras locais, e o salão do julgamento superlotado. Era no antigo fórum. Na rua, uma multidão de curiosos. Muitos deles de radinho de pilha nas mãos.

          Raymundo era advogado e também vereador. Cumpria a sua função naquele júri com dois objetivos plenamente compreensíveis: libertar o seu constituinte e aumentar as suas bases eleitorais.

          Justíssimas as suas pretensões.

          No júri, eu fui o acusador.

          Havia me precedido na comarca de Itabuna, também como promotor, o meu irmão Wilde, hoje desembargador e, naquele tempo, deputado estadual.

          Os debates foram muito tumultuados por apartes. Alguns longos e, não raro inoportunos. Não só por parte dos quatro advogados da defesa como vindos do promotor, no caso eu, como já me referi.

          O juiz Francisco Fontes usou de sua energia para manter a ordem, que, de fato, não chegou a ser quebrada, apesar do calor dos diálogos.

         Dos sete jurados, um tinha curso universitário. Os demais, pessoas simples do povo. Afinal, o júri é um tribunal popular. Todos os cidadãos devem ter vez. Está certo, assim.
         Eu havia tentado estudar todos os ângulos possíveis da causa. Levara para o fórum uma pilha de livros, para me permitir provar qualquer afirmação doutrinária ou de jurisprudência que viesse a fazer. Os defensores também estavam bem servidos de livros.

        Lá para as tantas, já na réplica, à noite – para evidenciar o caráter antissocial do acusado e os equívocos do falso ciúme que se proclamava, tomo de um livro, leio certo trecho e declaro:

       - Esta é mais uma lição de FREUD! (pronuncia-se “Fróid”).

       De imediato, num gesto de estudada elegância, o advogado Raymundo Lima pede um aparte, acrescentando, com astúcia: “se não vou atrapalhar o raciocínio de Vossa Excelência...”

        Respondi-lhe prontamente:

        - Pois não, nobre advogado. Sou toda atenção às suas palavras.

        E ele, mordaz, fingindo ignorância, certo de que feria encobertos objetivos, prosseguiu:

        - O irmão de vossa excelência foi promotor nesta comarca por muito tempo. Tribuno de qualidades invejáveis, como o nobre acusador de agora. Mas jamais precisou pronunciar palavrão neste plenário para cumprir a sua dura tarefa de acusar...

         - Eu me refiro ao pai da psicanálise, o grande Sigismundo Freud, a quem vossa excelência conhece muito bem – frisei.

         - Quanto mais imundo pior – fazendo-se de desentendido ele – E ainda por cima pai de mais filhos, que não conhece nem ampara. O irmão do nobre representante do Ministério Publico, torno a repetir, não diria palavrões aqui.

          Houve, entre os jurados e assistência, indisfarçáveis olhares de censura contra o meu “desrespeito” vocabular à pureza e à santidade do júri.

          Acredito que a maioria dos presentes e dos ouvintes acabou se convencendo de que eu citara mesmo o grande FREUD, a quem o mundo tanto deve. Tive que argumentar muito, mostrar o livro do genial judeu, desviando-me assim, por muitos instantes, dos autos. Apelei até para o conhecimento dos colegas do advogado Raymundo Lima, seus companheiros de defesa, que ficaram calados, pois não era hora de estarem falando.

          Mas deve ter ficado alguma dúvida contra a minha pureza vocabular. Porque um dia ouvi de certa senhora, que escutara os debates pelo rádio, o comentário de que o meu irmão, esse sim, falava no júri para qualquer família poder escutar.

          Ah, Raymundo Lima, meu querido e saudoso amigo, como eu te entendi naquele júri e te quis bem.


(CRÔNICA AVULSA)
Waly de Oliveira Lima
Da Antologia ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES
Seleção, Prefácio e Notas de Cyro de Mattos

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WALY DE OLIVEIRA LIMA - é Patrono da Cadeira 39 da Academia Grapiúna de Letras – AGRAL, ocupada pela poetisa Eglê Santos Machado. É também patrono da Cadeira 06 da Academia de Letras Jurídicas do Sul da Bahia – ALJUSBA, ocupada pelo Advogado Deusdete Machado de Sena Filho. Nasceu em Vitória da Conquista, a 29 de dezembro de 1919. Fez o curso primário em Jequié, Uruçuca e Salvador, onde, no Colégio Maristas, aprovado no admissão, iria ingressar no ginásio e alcançar o “complementar de direito”. Formado em advocacia pela Faculdade de Direito da Bahia, em 1944. Promotor de justiça durante muitos anos em Itabuna, onde lecionou nos colégios Divina Providência e Ação Fraternal. Crônicas suas aparecem na imprensa sul - baiana, jornal “Dimensão“ de Itapetinga, e “A Tarde”.

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