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terça-feira, 23 de maio de 2017

NUMA SEXTA-FEIRA SANTA – Ariston Caldas

Numa Sexta-feira Santa


            Sentia, perfeitamente, os atrativos de Abgail; eram muitos, da cabeça aos pés.

          O sorriso dela era um fulgor, boniteza de esbanjar; e os seios? “Vige Maria!”. Mas, somente sentia, não imaginava, muito menos com maldade.

            Abgail era prima-carnal dele, filha de Socorro, mulher de respeito, bondosa, quase sua mãe, irmã do pai que fora um sujeito bom de verdade: “Deus o tenha no reino dos céus”. Daí, nunca havia pensado coisas estranhas a respeito da prima, e nem podia ser diferente, menina de bons modos, bem educada em casa e no colégio, perto de se formar em professora, 17 anos.

            Os dois eram assim, assim, desde novinhos, ela com sete; ele com nove; correram picula, tomaram banho de rio. Nesse tempo Abgail nem ligava mais para bonecas, preferindo as peraltices pelo terreiro, pelo quintal,  entre as plantações; e ele sempre junto dela. Depois foram morar bem longe um do outro, ficaram adultos. O tempo correu e agora residiam aqui; ela, num bairro; ele no centro da cidade. Abigail ficou muito bonita, mais do que quando era menina, um conjunto de formas que só vendo. E ele sentia isso. Nunca imaginara que a prima se embelezasse tanto. A tia Socorro era muito bonita, mas nem se comparava à filha.

          Por que Abgail era sua prima carnal? Se pelo menos fosse parente em terceiro grau... Mesmo em segundo. Sendo carnal ele não podia nem devia dar uma arriscada, um piscar de olho. Nem pensava nessas coisas, mesmo com os impactos da beleza da moça,  de seus atrativos cheirando a perigo. Ademais, ele era um rapaz de bons princípios, educado num colégio de Beneditinos onde aprendera o significado do sinal da cruz, muita matemática, ler bem, escrever bem. Mas, não sabia por que, deu para sonhar com Abgail. Eram sonhos estranhos, cheios de sensações; acordava abatido, afogado de gozo e incriminando a hipótese de tudo aquilo transformar-se em verdade. Parecia astúcia do diabo tentando uma ignomínia entre ele e a prima. Não podia. Nem pensar.

            Numa sexta-feira da Paixão ele foi pegar o dendê em casa de Socorro; chegou cedo, a tia havia saído para a Adoração ao Santíssimo, e o marido dela, munido de anzol e capanga, saíra para pescar numa cidade vizinha e só voltaria no dia seguinte. A prima ficou sozinha em casa, cuidando das coisas; vestia um short curtinho e uma blusa de seda com as bordas amarradas acima da cintura mostrando o umbigo miúdo; descalça, o cabelo preso em popa, pequenas mechas soltas caindo pelas orelhas.

            Na chegada ele beijou o rosto de Abgail que passou a boca rente a sua; sentiu cheiro de chiclete, ficou apreensivo; lembrou-se dos sonhos e admitiu uma influência maligna, mas não maldou nada, além disso. Lembrou-se do pai  que devia se encontrar no reino dos céus; a tia estaria rezando na igreja, toda envolvida com as coisas divinas, ajoelhada frente ao altar.

            Abgail conversava alegre, fazia perguntas, destampava e tampava panelas pelo fogão, cruzando as pernas, a cintura delgada com as bordas da blusa amarradas, formando um nó com as pontas soltas. Mas era sexta-feira da Paixão, dia santificado, por isso nem podia sentir certas coisas, quanto mais pensá-las.

            Depois Abgail entrou para o quarto. “Vem pra cá”, disse ela, naturalmente, a fala meiga, soltando o cabelo. Em seguida deitou-se na cama e pendurou os pés para o chão, realçando as coxas avolumadas. “Sente aqui”, acrescentou ela.

          Pedro sentou-se. Socorro chegaria a qualquer momento. Aí Abgail empurrou com a ponta de um pé a porta do quarto. O pai estaria olhando-o lá do reino dos céus. Para os dois. E se pegasse no sono! A tia o flagraria na cama com Abgail. Ela de short bem curto ou já nuinha, desgrenhada, exausta,  bulindo os dedos dos pés.

            No altar da igreja onde Socorro rezava, teria um Cristo enorme pregado numa cruz preta de jacarandá, a fronte arrodeada de espinhos; aos pés da cruz, a mãe de Jesus, debruçada, com um manto roxo, chorando em silêncio.

            Abgail estava agitada, cheirando a suor, os seios pulando dentro da blusa de seda atada à cintura; ele nem tinha ânimo para libertar-se da tentação; Socorro chegaria a qualquer instante, batendo na porta da rua. Abgail teria trancado a porta da rua? Se a tivesse somente encostado, a tia entraria calada direto para o quarto dela, trocar de roupa. E se antes disso ela procurasse por Abgail, como costumava fazer! E se ela fosse logo para o quarto onde os dois se encontravam! “Tentação do diabo”. Só não temia o pai dela, o sabia na vizinha cidade, atrás de peixes.

            O corpo de Abgail era morno e cheirava a suor; os seios dela haviam se libertado da blusa já retorcida sobre a barriga delgada; o short atirado à toa pelo chão, junto a seus pés. O pai, no reino dos céus, desaparecera. Nem para dar um jeitinho e afastar a tentação do demônio. Sozinho naquela fogueira cheirando a chicletes e a suor, a outras coisas perigosas. Como conseguiria energia para libertar-se da situação? No momento, só de cueca, arfando como burro arrochado.

            E era sexta-feira da Paixão. “Tentação do diabo”, entre ele e Abgail, o mesmo sangue, filha da irmã do pai.

            Era cada sonho porreta. Acordou arrasado.


(LINHAS INTERCALADAS - 2ª Edição 2004)

Ariston Caldas

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