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terça-feira, 16 de maio de 2017

A MOÇA DA JANELA – Ariston Caldas


A Moça de Janela


            Todo dia ele passava por ali, cedinho, quinze antes das oito; ia assinar o ponto no banco onde trabalhava, gerenciado por um sujeito da cara amarela; “panhe aquela ficha ali”. O cafezinho pela manhã e à tarde, os clientes.
           
            Via, numa janela da casa a esquerda, uma moça acotovelada, cabelo úmido jogado para um lado; teria tomado banho naquele instante. Ela o olhava sorrateira, de banda, sem levantar o rosto. Conhecia-a  de vista e sabia chamar-se Lindaura, provavelmente de Souza, vindo do pai de prenome Estevão, comerciante conceituado no lugar, conhecido de ponta a ponta.

            Uma vez vira Lindaura participando de uma gincana pelo meio da rua, de short e camisa de malha com uma frase em inglês no peito; fora disso, só acotovelada na janela, pela manhã, na hora em que passava para o banco do gerente amarelo. Sentia vontade de dar-lhe bom-dia, mas temia: sóbria, filha de Estevão de Souza. Lindaura olhava para ele, de travessa, trejeitando os olhos; sentia-se frustrado quando passava e não a via na janela; quando chovia, por exemplo; aí se lembrava do cabelo jogado de banda, do olhar disfarçado; Lindaura não era tola  para se molhar.

            Gostaria de avistá-la todo dia à mesma hora, pouco antes das oito, com o cabelo úmido saído a pouco do banho. Por que sentia falta de Lindaura a quem nem dava um bom-dia? Hábito, costume de ver as coisas, as pessoas; tinha a certeza de vê-la no lugar, todo dia, logo depois do “pelo Sinal” e do café com torradas de pão e leite em pó; acendia um cigarro e saía cheio de curiosidade, esperando a surpresa adiante; a surpresa era Lindaura na janela, misteriosa, atravessando um olhar discreto, sutil, parecendo despretensiosa.

            Do meio da rua, nenhuma nitidez sobre o rosto dela  quase toda escondida, debruçada. Lembrava-a metida no short, de camisa de malha com uma frase no peito, numa gincana pelo meio da rua; isso havia algum tempo, a maior evidência, assim, era na janela, acotovelada, cabelo preto jogado para um lado; teria as mãos suaves, bem-feitas; os dentes de brancura, bem constituídos; olhos indefinidos, nem os sabia se brilhantes ou serenos, pois furtivos, quase obscuros como nuvem distante. Ela seria meiga? Gostaria de ter intimidade com Lindaura, mas sem maiores precipitações.


            Agora, passava e via, no lugar onde existira a casa dela, um edifício de três andares moderno, de vidraças, de porte civilizado, sem imitação com a antiga residência provinciana, demolida da Rua de Estevão de Souza então estabelecido parede-meia, onde vendia secos e molhados por trás de um balcão de tábuas lisas e grossas com mantas de carne seca, uma lata grande com manteiga a granel e uma balança velha, enferrujada, com pesos de bronze enfileirados numa caixa de madeira, começando por uma moeda de cobre de quarenta réis que valia vinte e cinco gramas. A casa de Lindaura era azul; a porta, três janelas e as cornijas cor-de-cinza; platibanda, com losangos e a data da construção – 1933. Germínio tinha vontade de aproximar-se, fazer perguntas a Lindaura, comentar acontecimentos; mas nem um bom-dia, temia o olhar sutil, ela seria pedante, superior; filha de Estevão de Souza, comerciante conceituado na cidade. Agora olhava o prédio no lugar onde fora a casa de Lindaura, vinte anos; em frente, ainda algumas edificações daquele tempo, ajaneladas, de cornijas mas sem datas de construção, pelos modelos deviam ser da mesma época da casa de Lindaura antes do prédio de três andares.

            Recordava que nunca vira moça nenhuma nas janelas dessas casas, só em frente Lindaura de cabelo preto jogado para um lado do rosto, olhar preguiçoso para o meio da rua por onde ele passava, agora com o chão asfaltado, trânsito intenso de veículos, lojas, camelôs pelos passeios.

            Onde andará Lindaura? As primeiras notícias depois que ela sumiu informavam que a família havia se mudado para Salvador; depois, nunca mais soubera de coisa nenhuma, veio o silêncio e ninguém mais falou sobre o assunto. Será que ela se casou? Teria algum filho?

            Bem que ele teve palpite para aproximar-se e largar uma declaração de amor. “Sim”. Aí afagaria as mãos de Lindaura que deveriam ser macias. O cabelo pendido para um lado do rosto; beijaria os olhos dela no momento em que eles se desviassem para o meio da rua por onde passava para assinar o ponto no banco do gerente amarelo.

            Subitamente lembrava-se de tudo isso, sentindo Lindaura acotovelada na janela, de olhar manso, nem o sabia se com alguma intenção; pedante, filha de Estevão de Souza, sujeito conceituado no lugar.


(LINHAS INTERCALADAS- 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas

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