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terça-feira, 15 de novembro de 2016

"TRUMP É UM VENENO, VENDIDO COMO ANTÍDOTO AOS MALES DE HOJE."


Entrevista com Zygmunt Bauman
14 Novembro 2016

Para Zygmunt Bauman, decano dos sociólogos europeus, um dos mais renomados pensadores contemporâneos, a vitória eleitoral de Donald Trump é um sintoma alarmante: ela reflete o divórcio já existente entre poder e política, do qual deriva um vazio, uma lacuna preenchida por aqueles que prometem soluções fáceis e imediatas a problemas complexos e sistêmicos, recorrendo ao rico reservatório da retórica populista.
A reportagem é de Giuliano Battiston, publicada no jornal La Repubblica, 11-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trump – explica Bauman à revista L’Espresso – soube jogar habilmente a carta do forasteiro e do homem forte, combinando uma política identitária discriminatória e a ênfase nas ansiedades econômicas dos cidadãos estadunidenses, filhas da passagem de um modelo econômico inclusivo a um modelo que exclui, marginaliza e cria verdadeiros exilados. 
Trump se apresentou como o antídoto às incertezas do nosso tempo, mas é um veneno, defende Zygmunt Bauman, razão pela qual a vitória do empresário estadunidense leva a pressagiar o risco de que os tradicionais mecanismos de tutela democrática sejam substituídos pela "aglutinação do poder em modelos autoritários, até mesmo ditatoriais".
Os esquecidos do novo século fizeram a revolução. À direita, porque a esquerda não os quis ver. Um choque epocal que não diz respeito apenas aos Estados Unidos, mas que abala o próprio conceito de Ocidente.
Eis a entrevista.
Nos EUA e na Europa, a reação predominante à vitória de Trump, ao menos nos ambientes progressistas, foi de espanto e de medo. Alguns falaram de um "grande perigo", outros de "um desafio ao modelo democrático ocidental", outros ainda de "uma tragédia para a república estadunidense e para a Constituição". Esses tons às vezes apocalípticos lhe parecem adequados?

As visões apocalípticas despontam sempre que as pessoas entram no "grande território desconhecido": quando estamos certos de que nada, ou muito pouco, continuará como está e não temos nenhum indício sobre o irá ocorrer ou sobre o que provavelmente irá substituir aquilo que deixamos para trás. As reações à vitória de Trump proliferaram rapidamente. O surpreendente é que são todas consensuais: assim como aconteceu no caso da votação pelo Brexit, interpreta-se o voto em Trump como um protesto popular contra o establishment e a elite política do país como um todo, em relação aos quais uma grande parte da população amadureceu uma crescente frustração por ter desatendido as expectativas e não ter mantido as promessas feitas. Não surpreende que tais interpretações estejam particularmente difundidas entre aqueles que têm fortes interesses adquiridos na manutenção do atual establishment polític

Enquanto isso, Trump jogou justamente a carta do forasteiro...

Não fazendo parte de tal elite, não tendo ocupado nenhum cargo eletivo, provindo "de fora do establishment político" e estando em forte desacordo até mesmo com o partido do qual era formalmente membro, Trump ofereceu uma oportunidade única para uma condenação, sem apelo, contra todo o sistema político. O mesmo aconteceu no caso do referendo britânico, quando todos os principais partidos políticos (dos conservadores ao Labour e aos liberais) se uniram no pedido de permanecer na União Europeia, de modo que cada cidadão pôde usar o próprio voto para expressar o nojo pelo sistema político como um todo.
Outro fator complementar foi o notável anseio da população para que a infinita disputa parlamentar, ineficaz e impotente, fosse substituída pela vontade indomável e incontestável de um "homem forte" (ou de uma mulher forte), capaz, com a sua determinação e com os seus dotes pessoais, de impôr, de modo imediato, sem hesitação e procrastinação, soluções rápidas, atalhos, decisões de verdade.Trump construiu habilmente a sua imagem pública como uma pessoa rica nessas qualidades com as quais o eleitorado sonhava.
Estes recém-citados não são os únicos fatores que contribuíram para o triunfo do Trump, mas, sem dúvida, são cruciais. Ao contrário, o pertencimento de 30 anos de Hillary Clinton ao establishment e a sua agenda política fragmentada e compromissada jogaram contra a popularidade da sua candidatura.

Você concorda com aqueles que chegam a ler a vitória de Trump como uma manifestação da crise do modelo democrático ocidental?

Eu acho que estamos assistindo à acurada evisceração dos princípios da "democracia", que se presumia que fossem intocáveis. Eu não acredito que o termo em si será abandonado, ao menos como termo para descrever um ideal político, até porque esse "significante", como definiria Claude Levi-Strauss, absorveu e ainda é capaz de gerar muitos e diferentes "significados". Mas há uma clara possibilidade de que os tradicionais mecanismos de salvaguarda (como a divisão de Montesquieu do poder em três âmbitos autônomos, o legislativo, o executivo e o judiciário, ou o sistema britânico de checks and balances) saiam de algum modo do favor público e sejam desprovidos de significado, substituídos de modo explícito ou de fato pela aglutinação do poder em modelos autoritários ou até mesmo ditatoriais.
As citações que você relatou como reações à vitória de Trump indicam, todas, uma preocupação comum, são sintomáticas de uma tendência crescente, que existe: a tendência de trazer de volta – por assim dizer – o poder dos nebulosos picos elitistas onde havia sido colocado e para onde foi arrastado. Uma tendência, portanto, de restaurar o poder dentro de uma comunicação direta entre o homem forte na cúpula, de um lado, e, de outro, a agregação dos seus defensores e sujeitos de poder, equipados com as redes sociais como instrumentos de doutrinação e de sondagem das opiniões.

Durante a campanha eleitoral, Trump insistiu muito nas questões raciais e no nacionalismo mais insular e discriminatório, mas não apelou apenas a esses temas. Para além dos ataques sistemáticos contra os "diferentes", ele jogou a carta da incerteza econômica de todos aqueles cidadãos estadunidenses que têm a percepção de terem sido defraudados pelos processos de globalização. Os dois aspectos – a ansiedade econômica e a ansiedade em relação aos "outros" – estão ligados? Como?

O truque foi justamente o de conectar os dois aspectos, torná-los inseparavelmente ligados e reforçá-los mutuamente. Foi isso que Trump conseguiu fazer, um supremo impostor (embora não seja o único no panorama político mundial). Estou inclinado a ir ainda mais longe na análise do uso que Trump fez do casamento entre política identitária e ansiedade econômica, porque acredito que ele conseguiu condensar todos os aspectos e os setores da incerteza existencial que persegue aquilo que restou da classe trabalhadora e da classe média, doutrinando aqueles que sofrem com a ideia de que a expulsão dos estrangeiros, daqueles que são etnicamente diferentes, dos estrangeiros recém-chegados represente a tão cobiçada "solução rápida" que poderia reembolsá-los, de uma vez só, por toda sua ansiedade e incerteza.

Entre aqueles que votaram em Trump, alguns fazem parte da categoria dos "expulsos": aqueles cidadãos que faziam parte de um "contrato social", mas que foram expulsos dele à força, junto com aqueles, jovens mas não só, que não faziam parte dele e nunca o serão no futuro. A vitória de Trump representa o fim do modelo econômico inclusivo, keynesiano, do pós-guerra, substituído por um modelo de sinal oposto, que exclui?

A passagem de uma visão de mundo, de uma mentalidade e de uma política econômica que inclui a uma que exclui não é nova, de fato. Foi uma passagem estreitamente sincronizada com outro salto qualitativo, o de uma sociedade de produtores a uma sociedade de consumidores, que não teria sido possível sem a marginalização, ou seja, a criação de uma "subclasse", que não só está degradada em relação à sociedade de classes, mas também foi totalmente exilada dela, uma categoria de "consumidores fracassados", tão excluída a ponto de não pode ser readmitida. A atual tendência à "securitização" dos problemas sociais põe mais água no mesmo moinho: torna as redes de exclusão ainda mais amplas, enquanto transfere aqueles que acabam nessas redes de uma categoria que, embora inferior, continua sendo de sinal "positivo", a uma divisão que, embora suave, continua sendo mortal, sinistra e tóxica.

Em alguns dos seus livros, por exemplo em "A solidão do cidadão global", você analisa aquilo que define como "a trindade malvada", a incerteza, a insegurança e a vulnerabilidade, sentimentos predominantes em um mundo em que ocorreu o divórcio entre poder e política. É inevitável que tal divórcio leve ao homem forte ou ao populismo?

Sim, eu tendo a acreditar que é inevitável. O divórcio ao qual você se refere deixa atrás de si um fosso – uma lacuna que está aumentando assustadoramente – do qual emana a combinação venenosa entre desespero e infelicidade. Os instrumentos ortodoxos, que nós acreditávamos que fossem familiares e que estivessem disponíveis para combater e rejeitar eficazmente os problemas e as ansiedades que nos afligem, já foram superados. Acima de tudo, não se acredita mais que eles possam manter aquilo que prometem. Para uma sociedade na qual cada vez menos pessoas se lembram, em primeira mão, do que significava viver sob um regime totalitário ou ditatorial, o homem forte – ainda não experimentado – não parece um veneno, mas um antídoto: pelas suas supostas capacidades de saber fazer as coisas, pelas soluções rápidas e instantâneas, pelos efeitos imediatos que ele promete trazer como bagagem à sua nomeação.

Beppe Grillo, o líder italiano do Movimento Cinque Stelle, ressaltou as semelhanças entre as vitórias eleitorais do seu partido e a de Trump, escrevendo que "são aqueles que ousam, os obstinados, os bárbaros, que levarão o mundo para a frente. E nós somos os bárbaros". Chegou a hora de que o establishment realmente faça as contas com os novos bárbaros?

Na Europa, os vários Grillo são muito numerosos. Para aqueles para os quais a civilização fracassou, os bárbaros são os salvadores. Em alguns casos, é nisso que eles se esforçam, de todos os modos, em levar a acreditar, para convencer os ingênuos de que é realmente assim. Em outros casos, é nisso que desejam acreditar ardentemente aqueles que foram abandonados e esquecidos na distribuição dos grandes dons da civilização. Alguns membros do establishment poderiam estar impacientes para aproveitar a oportunidade, já que aqueles que acreditam na vida póstuma, às vezes, estão dispostos a se suicidar.


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