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terça-feira, 4 de agosto de 2020

MORRE JORGE PORTUGAL – Ivandilson Miranda Silva

                Portugal, Poeta, Compositor, 

Professor, Mestre Senhor da Cultura: 

SALVE JORGE!


*Ivandilson Miranda Silva 

 

Recebemos a triste notícia (03/08/2020) da partida do mestre Jorge Portugal, um dos grandes da cultura e da educação na Bahia.

Portugal era uma dessas pessoas que transitava em diversos espaços e com sua fala envolvente e encantadora, criava empatia com segmentos variados da sociedade. Políticos de várias matrizes, artistas, intelectuais, povo das várias religiões, gente que faz “a alegria da cidade”, abraçava, cantava e aprendia com Portugal Jorge, “a dor da gente” hoje, não é a dor de “menino acanhado”, a nossa dor hoje, “castiga a massa dos homens [e mulheres - grifo meu] normais”, essa dor “salta aos olhos igual a um gemido calado”. Essa canção sua e de Sodré fez “a massa” cantar e se alegrar, hoje somos gratidão, silêncio.

Mesmo quando dos entreveros da vida, pois humanos erram, Portugal fala para o próprio Portugal: “Abra os olhos, e assuma os enganos, de quinhentos anos, cara pálida, abra os olhos, que a fome te assalta e a gente se mata pelos canos”. Estamos tentando Jorge, o problema é que muitos não querem acordar, pois “põe no dia-a-dia o esquecimento.”

Parece que ainda não entenderam a mensagem dita por você e Lazzo (a voz da Bahia), pois “no dia 14 de maio” (a falsa pós-abolição), “nenhuma lição, não havia lugar na escola, pensaram que poderiam me fazer perder, mas minha alma resiste, o meu corpo é de luta, eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu.”. “No dia 14 de maio eu saí por aí” e a resistência contra o racismo continua. 

Portugal e outro saudoso mestre Saul Barbosa, afirmam que “a cidade da Bahia, povoada de poesias, mira o mar, mira o mar”. É verdade, essa terra de senhores e senhoras da cultura reverencia sua obra, sua vida em registro poético/musical/existencial.

Mestre, assim como canta a MÃE SENHORA da música baiana (Maria Bethânia) numa linda composição sua e do seu irmão e mestre Roberto Mendes, “quanto mais a gente ensina, mais aprende o que ensinou”, isso foi o seu presente, o tempo todo, sem divisões e o seu céu hoje “é todo blue e o mundo é um grande gueto”, pois ainda há lutas por melhores dias, por um outro mundo possível.

Jorge Portugal, obrigado e “quem não deu, tem que dar amor”, ainda podemos vencer o ódio e sua poesia/música/aulas, nos mostrou a possibilidade de “caminhar, andar por música, por aí, por aí..."

Axé “Baianos Luz”. 

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Ivandilson Miranda Silva

* Um Servo do Saber em busca da Batida Perfeita

(Recebi via WhatsApp)


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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

UM SINGULAR CASAMENTO – Miguel de Cervantes

 

        Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, um soldado que, por usar a espada como bordão e palidez do rosto, denotava claramente – embora a temperatura não fosse cálida – que ele deveria ter transpirado em vinte dias toda a disposição adquirida numa hora. Ao transpor a porta da cidade, percebeu aproximar-se em sua direção um amigo, a quem não via há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

             - Que aconteceu, senhor Alferes Campuzano? – Imaginava-o em Flandres. Que palidez, que fraqueza é essa?

             - Estou saindo daquele hospital, onde sofri catorze suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha esposa, quando jamais o deveria ter feito.

            - Quer vossa mercê dizer que se casou? – Perguntou Peralta. – E foi por amor? Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.

             - Não sei se foi por amor – respondeu o Alferes – embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que não encontro remédios para aliviar-me. Mas perdoe-me Peralta, estou fatigado, outro dia contarei o rol das minhas desgraças, que é longo e fastidioso...

             - Não será assim – disse o Licenciado – pois desejo que venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas.

             Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite. Foram ambos a São Llorente e mal chegados a sua casa, após uns copos de bom vinho, pediu o Licenciado que Campuzano narrasse os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a falar:

            - Vossa mercê bem se recorda como fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres?

             - Bem me recordo, - respondeu Peralta.

             - Pois um dia, quando mal acabávamos a refeição na pousada de Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o capitão. A outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o chale até o pescoço, não deixando ver o seu rosto mais do que a transparência do chale o permitia. Roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

             - Não sejais importuno. Tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga. Folgarei então que me vejais.

            Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia, em paga da qual prometi punhados de ouro. E assim, no dia seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos a quem reconheci pelas mãos. Mantivemos longos e amorosos colóquios durante quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, porém, a colher o fruto ambicionado.

           Nos momentos em que a visitava, sempre encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes. Servia-lhe certa moça mais astuta do que simplória. Tratando meus amores como soldado em véspera de partida, apertei, fielmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo – é este o nome de quem assim me deixou – que respondeu. – “Tola seria, senhor Alferes Campuzano, se quisesse vender-me a vossa mercê por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos comentem e os empregados murmurem. Não sou também de grandes posses, mas o que tenho aqui em casa vale – bem contados – dois mil e quinhentos escudos. Com esta fortuna procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Nada desperdiço e muito economizo. Procuro, pois, marido que me ampare e honre e não amante que se aproveite e depois vá falar por aí... Se vossa mercê souber aproveitar a prenda que se oferece, aqui estou a vossa disposição...”

             Eu, que estava com o juízo, não na cabeça, mas nos calcanhares, respondi-lhe que me julgava muito afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal... E nos próximos três dias de festas que vieram pela Páscoa fizeram-me as proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela...

            O criado conduziu meu baú da pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nele, diante dela, a minha esplêndida corrente, minhas roupas e entreguei-lhe para as despesas da casa os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro pobre em casa de sogro rico, a lua-de-mel. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo às doze e sestando às duas. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelos perfumes que exalavam, pareciam um novo Aranjuez, banhados como eram em água de flor de laranjeira.

             Ao fim desses dias maravilhosos, certa manhã – quando ainda no leito com Dona Estefânia – chamaram com grandes batidas na porta. Ouço a criada dizer, assomando à janela:

            - Oh, seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que avisara na sua carta...

            - Quem é que chegou, mulher? – perguntei.

             - Quem? Respondeu ela. Minha senhora Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Melendez de Alemendárez, dois criados Hortioga, a ama.

            - Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que já vou – disse Dona Estefânia, à criada, que parara sem saber que atitude tomar. – E dirigindo-se a mim. E vós, senhor, sabei somente que tudo o que aqui se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual sabe-lo-eis depois.

            Em seguida entraram no quarto Dona Clementa e Dom Lope, bizarramente vestidos e ricamente ataviados.

           Dona Hortioga, a ama, foi a primeira a falar, exclamando:

             - Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa, além disso, com um homem?

             A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:

            - Não se aborreça, Dona Clementa Bueso, e creia que não é mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e vossa mercê sem nenhum motivo de queixa.

             Nestas alturas eu já vestira as calças e a camisa e Dona Estefânia tomando-me pelo braço levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa lhe pertencia. Uma vez realizado o casamento pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.

           - E logo me devolverá tudo – acrescentou.

            Logo a seguir mudamos para a casa de uma sua amiga, onde ficamos alojados num quartinho pequeno e imundo. Ali estivemos seis dias e não passou uma hora que não tivéssemos qualquer discussão. A dona da casa de tanto ouvir as desavenças, um dia a sós, perguntou-me o motivo daquelas querelas que lhe pareciam tão inúteis como fastidiosas. Contei-lhe toda a história... Ela então começou a benzer-se e me disse:

            - Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também a pesaria se permanecesse calada. Porém por Deus e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clemente Bueso é a verdadeira dona da casa e dos haveres que lhe deram como dote. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o senhor Alferes.

            Aqui ela deu fim a sua conversa e eu dei princípio ao meu desespero. Fui ver o meu baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça... Dona Estefânia se fora e com o primo...

             - Bem esperta foi – disse, neste momento, o licenciado Peralta – haver dona Estefânia levado suas correntes e tantos cintos...

             - Nenhuma pena me deu essa falta – respondeu o Alferes – pois também poderei dizer: pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha e, por Deus, coxo eu de um lado...

            - Não sei a que propósito pode vossa mercê dizer isso – respondeu Peralta.

             - O propósito é, disse o Alferes – de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e roupas poderia valer quando muito dez ou doze escudos.

             - Isso não é possível – replicou o Licenciado – porque a corrente que o senhor portava no pescoço aparentava valer muito e pesar mais de duzentos ducados.

             - Assim seria se a verdade fosse o que a aparência mostrava; porém como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, os cintos e as joias não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.

             - Dessa maneira – disse o Licenciado – entre vossa mercê e a senhora Dona Estefânia houve empara no jogo?

             - E tão empate – respondeu o Alferes – que poderíamos voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago está, senhor Licenciado, que ela poderá se desfazer de minhas roupas e correntes e eu não do laço em que caí. Sim, porque, embora muito me pese, ela é minha mulher.

             - Dai graças a Deus, senhor Campuzano, que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.

            - Assim é – respondeu o Alferes – porém, com tudo isso, embora não a procure, tenho-a sempre no pensamento, e onde quer que esteja está sempre presente a vergonha.

             - Não sei o que responder, senão trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem:

          “Chi chi prende diletto di far frode,

            Non side lamenta s’altri l’inganna.”

            O que traduzido para nossa língua quer dizer: - “Aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve queixar-se, quando é enganado.”

             - Não me queixo – falou o Alferes – e sim me lastimo, pois o culpado, deixa de sentir a pena do castigo. Dizem que sararei, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto Deus remediará.

 

(CONTOS DE ALCOVA – Dezembro de 1963)

Compilados por Yves Idílio

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Cervantes


           A alma mística de Espanha ausente não poderia ficar longe dessas páginas, e por falar por ela ninguém, maior que D. Miguel de Cervantes Saavedra. O autor do “El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de La Mancha” mais do que qualquer ouro de língua latina, entre nós, dispensa comentários e veleidade seria querer apresentá-lo. Aprendemos, aqui em nossa terra, a tomar conhecimento com a sua obra quase que ao mesmo tempo em que sugamos o leite materno...              Neste magnífico “Um Singular Casamento” encontramos a mesma sátira, o mesmo humor, a mesma análise dos costumes e a mesma observação detalhada dos outros escritos de Cervantes. É uma pitada, - como diria Dom Quixote – tão ardida como penetrante...

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Miguel de Cervantes Saavedra foi um romancista, dramaturgo e poeta castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerada o primeiro romance moderno, é um clássico da literatura ocidental e é regularmente considerada um dos melhores romances já escritos. 

(Wikipédia)

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domingo, 2 de agosto de 2020

A COZINHA DOS ANJOS – Nelson R. Fragelli

2 de agosto de 2020

A Cozinha dos Anjos – Bartolomé Esteban Murillo (1646). Museu do Louvre, Paris. 


Nelson R. Fragelli


O quadro acima é uma obra-prima de Murillo (1617-1682), na qual o grande pintor espanhol retrata o milagre ocorrido na cozinha de um dos mosteiros da Ordem de São Bruno.

Acabavam os caridosos monges de saciar a fome dos pobres, à custa de suas últimas provisões. Despensa vazia, faltava tudo no mosteiro, até mesmo o pão. Privação, pois, para todos. O Superior tinha ordenado dar de comer a quem pedisse, faltasse o que faltasse aos religiosos. Esta era a regra. Com paz de alma, inclinando-se à santa obediência, todos deram tudo, dispostos à míngua. O afluxo de indigentes vinha sendo grande, e não era a primeira vez que, após se retirarem os pobres com pão e toucinho no alforje ao ombro, restava aos religiosos apenas a penúria.

Consideremos as aves do céu…

À hora do almoço, tocou o sino no claustro na velha abadia. Nos bons dias, aquele timbre rotineiro prenunciava pão fresco e uma consistente sopa fumegando já à mesa. Naquele instante ele soava, mas privado da expectativa de deleites do paladar. A regra, entretanto, era positiva: tocado o sino, todos devem comparecer ao refeitório. No quotidiano de um monge, cada ação era marcada por regradas horas, e seguir a voz do bronze fazia parte da estrita observância. Formado o cortejo, todos se dirigiram às mesas, dispostas sob as altas abóbadas do austero salão onde os corpos se restauram das atividades religiosas. Na galeria de acesso ao refeitório, nenhum odor prenunciava o caldo quente: mesas nuas, fogões apagados, cestos vazios de pão. Conformados, os religiosos recordavam-se da palavra do Mestre: “Não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mt 6, 25-26).

Um dos monges, de nome Tiago, mais tarde canonizado, seguiu o cortejo abismado em orações. Não pedia pão, pedia fidelidade em circunstância tão propícia ao exercício desinteressado do amor de Deus. Fervorosos pensamentos o transportaram em êxtase, e ele gravitava elevado do solo. Subtraiu-se assim, milagrosamente, às leis naturais que regem a humana condição neste mundo. Deus, que recompensa quem se esquece de si mesmo para se abismar em Seu amor, acorreu para dar-lhe o prêmio. À vista de todos, anjos desceram do Céu e começaram a cozinhar às pressas, enquanto Tiago rezava de mãos postas.

Dois anjos discutiam o cardápio e alguns dispunham os utensílios de cozinha: caldeirões, gamelas de cobre, jarros de faiança. Um deles empunhava uma tigela de argila para buscar água na fonte. Outro colocava os pratos. Um terceiro, pondo sal num caldeirão, fazia ferver a sopa, enquanto seu angélico auxiliar socava temperos num pequeno pilão. Coube a querubins escolher legumes num cesto, e Aquele que multiplicara pães e peixes no deserto Se mantinha o Mesmo. Sua bondade é eterna, e se rejubilaram os frades: vai sair o almoço. Segundo o historiador francês Alfred Nettement, de quem tomamos esta descrição, o Superior entrou com dois convidados, cavaleiros da Ordem de Calatrava. Sem o trabalho dos anjos, como poderia receber condignamente tão importantes convivas?

Retratando o milagre, Murillo externou a fé de seu tempo e pôs à consideração de todos esta realidade esquecida, se não denegada: os anjos estão sempre junto aos homens, iluminando e governando aqueles que reclamam seu socorro. Quase nunca visíveis, entretanto, com sua presença sobrenatural eles nos circundam. Com profusão de detalhes claro-obscuros, o quadro sugere a misteriosa — mas quão real — ajuda dos anjos àqueles a quem guardam.

A França sem restaurantes não é a França

         Embora pintado por um espanhol, esse quadro está em Paris, no Museu do Louvre. Não por acaso. Ninguém entende tão bem como os franceses que a cozinha tem parte com os anjos. Uma reportagem do Paris Match, de 13 de maio passado, evoca a tela de Murillo. Seu título — “A França sem restaurantes não é a França” — exprime o melhor do artigo. É importante, sem dúvida, a análise da catástrofe financeira ocasionada pela quarentena, a pretexto da atual epidemia, e a cozinha é forçosamente ligada a aspectos financeiros. Brutalmente fechados por ordem do governo, sem prévia advertência, os chefs serão dentro em pouco obrigados a mendigar seu pão. Isto nunca se deu, nem mesmo nos períodos de guerra. Entretanto, a perda vai além.

         A cozinha francesa nasceu nos mosteiros medievais, sobretudo entre os beneditinos de Cluny, cujos conventos civilizaram a Europa. Os cozinheiros de Cluny — em geral monges de famílias distintas — tinham como dever não copiar o mesmo cardápio duas vezes ao ano: a cada dia, nova receita. Não havia livros de receitas, e obviamente era preciso esforço de imaginação, variedade de ingredientes, qualidade dos produtos. Desse empenho dos conventos surgiram os altos predicados da culinária francesa, que perduram até hoje.

O discernimento religioso dos monges penetrava a natureza das substâncias alimentícias, o espírito dos condimentos, a percepção dos paladares, a harmonização de sabores: “O arroz é um amável conciliador, aproximando truculências melindrosas; em sua essência, o espinafre vale pouco, mas é suscetível de bem acolher impressões várias”. Embebidos de cogitações como estas, penetradas de profundo espírito religioso, tinham em vista a formação das almas. Desenvolveram assim uma arte próxima de uma ciência. Assim a arte culinária francesa sacralizou a mesa, e esta sacralização subsiste gloriosamente até os correntes dias, quando quase toda a nossa cultura apresenta catastróficos aspectos de fim de civilização.

A aristocracia aprimorando e elevando a culinária

Pintores e poetas têm por vezes intuições notáveis. Murillo, com sua obra, ligou a cozinha aos anjos. Ele estava certo. Até parece que, ao pintar, pensava na França. Nascida nos mosteiros, desenvolvida nos castelos, a autêntica cozinha francesa sempre comunica um nítido sentido espiritual ao que elabora. Por meio dos sabores simples ou requintados, caseiros ou palacianos, sempre põe no espírito imagens de perfeição. Seus sabores pedem reflexão para serem bem entendidos. Não é exagero dizer que seus pratos frequentemente pedem recolhimento, talvez mais do que reflexão.

         Os santos abades de Cluny lutaram para conferir elevação espiritual ao ato de comer. Sua época, por volta do ano mil, era ainda tomada por hábitos bárbaros, ainda pagãos em tantos aspectos, semelhantes a maneiras animais. Um dos modos de essa procurada elevação se operar foi pelo aprimoramento do paladar, daí a proibição de apresentar à mesa pratos já servidos no mesmo ano. Quanto pensamento foi necessário para cumprir este ponto do famoso Ordo de vida monástica!

         As elites sociais dos primeiros séculos da Idade Média se formaram progressivamente, segundo o modelo de conduta dos monges. Estes lhes modelaram o caráter e os rústicos costumes, segundo a dignidade eclesiástica, e ao longo dos séculos foram destilando uma nobreza. Não descuidaram dos modos e da mesa. Em recíproco entendimento entre o ideal da nobreza e a habilidade dos cozinheiros, surgiram paulatinamente ao longo dos séculos os chefs famosos.

Pratos célebres tomaram o nome de nobres a quem sua cozinha dedicou tais elaborações: vitelos levam muitas vezes o nome dos duques de Lavallière; o Príncipe de Condé deu nome a sopas, que nos gélidos invernos confortam os que as tomam; até hoje se aprecia o filé à Chateaubriand ou o frango a la Reine (à moda da rainha). A nobreza, zelosa de toda estética, deu aos pratos não só sabor, mas um décor maravilhoso, segundo o princípio “se a vista não tem uma surpresa, o apetite não é suficientemente despertado”.

Se a aristocracia elevou a culinária francesa ao parnaso das artes, evidentemente essa elevação contou com a participação do homem do campo — simples hortelãos ou fazendeiros, cultivadores, modestos vinicultores, e tantos outros despretensiosos camponeses. Sem a aristocracia eles não aprimorariam seus produtos, mas sem o homem do campo o húmus agrícola civilizador não chegaria à elite. Portanto, a mesa uniu jubilosamente as classes sociais.

Inspiração angélica no aprimoramento dos sabores

         Antes de ser luxo, essa arte era caridade. Por caridade se entende os ritos da cortesia a fim de tratar bem o próximo. Esses ritos eram inúmeros, e em alguma medida ainda permanecem. A boa mesa tem o dom de serenar os ânimos e distender os espíritos, dispondo-os à concórdia. Os bons pratos fazem os bons amigos, e a qualidade suscita a caridade. O filme dinamarquês “A festa de Babette” ilustra de modo prazenteiro esta verdade — a cozinha de Babette movia os corações.

          A cultura cristã tem como regentes e protetores os três arcanjos de conhecidos nomes — São Miguel, São Gabriel e São Rafael. Segundo o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o Príncipe da milícia celeste, São Miguel, tem funções guerreiras, foi seu brado Quis ut Deus que esmagou a revolta dos anjos e precipitou no Inferno os anjos maus. São Gabriel, com iluminada missão diplomática, foi o embaixador do Altíssimo junto a Nossa Senhora, e com seu tato apuradíssimo perguntou delicadamente à Virgem Maria se Ela consentiria em ser a Mãe do Messias. São Rafael, cuja viagem guiando Tobias é longamente narrada na Sagrada Escritura, ajuda os homens nas dificuldades da vida e inspira-os a seguir os bons caminhos.

          Os anjos iluminam, guardam, inspiram e governam todas as ações humanas. O milagre no convento de São Bruno comprovou a sacralidade angélica do lugar e das funções ali realizadas. Ao retratá-lo, Murillo parece ter traçado os rumos da cozinha francesa, assistida pelos três Arcanjos. Inicialmente uma fase atribuível à ação de São Miguel, lutando para vencer a rusticidade pagã entranhada nas almas. Na fase seguinte, São Gabriel fez com que a elevação da mesa cumprisse o mandato do amor ao próximo, proporcionando fraternas reuniões. E finalmente o arcanjo São Rafael seria o orientador do senso espiritual francês, nas vias ascensionais dos requintados sabores.

         “A cozinha dos anjos”, de Murillo, poderia chamar-se “Os anjos cozinheiros”. O milagre sacralizou o local, o que ali se fez e quem o fez. Esse milagre ocorrido na Espanha, e perenizado por um de seus maiores pintores, foi tomado a sério pela França, como um fator de superior unidade da Cristandade; pois a culinária une não somente as classes; une também as nações entre si. E une os homens aos anjos.

Uma França sem restaurantes como outrora, sem grandes cozinhas e grandes cozinheiros assemelha-se a uma França sem anjos.


http://www.abim.inf.br/a-cozinha-dos-anjos/


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PALAVRA DA SALVAÇÃO (195)

18º Domingo do Tempo Comum – 02/08/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 14,13-21)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.

— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado. Mas, quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé. Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes. Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!”.

Jesus, porém, lhes disse: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Os discípulos responderam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes”. Jesus disse: “Trazei-os aqui”.

Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões. Todos comeram e ficaram satisfeitos, e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios. E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Roger Araújo:


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Somos as mãos de Deus

 

“Os discípulos distribuíram os pães às multidões” (Mt 14,19) 

Poderíamos dizer que o relato do Evangelho deste domingo é uma parábola em ação.

A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.

Quando Jesus e seus discípulos vão pelo mar, a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.

De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.

O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.

Jesus, nos diz o relato, primeiro sente compaixão das multidões, e depois convida a partilhar.

Em contraste com atitude compassiva do Mestre, os discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que as multidões sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.

Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, da apropriação e da acumulação.

Os produtos da terra estão situados na lógica do amor, que é a única força transformadora da história. Esta é a utopia do Reino: um povo reunido harmoniosamente pela mesma busca faminta e pela mesma saciedade, onde os alimentos da terra, produzidos com esforço, são compartilhados com todos, sem que ninguém negocie ou acumule.

Tudo aparece reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, em uma relação entre elas mesmas e com Deus sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixaram afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.

Só será efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus.

Jesus não pediu a Deus que solucionasse o problema da fome, e sim, mobilizou os seus discípulos para que encontrassem uma saída diante daquela penúria. E a saída está na capacidade de partilha de todos.

Também aqui é preciso “ouvidos” e “olhos” bem abertos para encontrar a chave de compreensão da cena. Há um risco de permanecermos na superfície do relato, assombrando-nos com o prodígio da “multiplicação dos pães”. Na realidade, não foram os pães que “se multiplicaram”, mas a generosidade da partilha do alimento.

O certo é que, tudo o que as pessoas tinham, foi colocado à disposição de todos. Esta atitude desencadeia o prodígio: a generosidade se contagia e realiza o “milagre”. Quando se deixa de monopolizar os bens, eles chegam a todos. Quando os bens imprescindíveis para a vida são monopolizados, provoca-se a miséria, a fome, e a morte. Na intenção do evangelista, Jesus demonstra, deste modo, que o problema não é a carência de recursos, mas a falta de solidariedade.

Realmente foi um verdadeiro “milagre” que um grupo tão numeroso de pessoas compartilhassem tudo o que tinham até conseguir que ninguém ficasse com fome. Porque o texto não fala de “multiplicar” o alimento, mas de “dividi-lo”: quando ele é partilhado, costuma sobrar. Que acontece com os pães e os peixes nas mãos de Jesus? Não os “multiplica”. Primeiro, bendiz a Deus e lhe dá graças: aqueles alimentos vem das mãos de Deus: são para todos.

A dinâmica normal da vida nos diz que o “pão”, indispensável para a vida, deve ser adquirido com dinheiro, porque alguém o monopoliza e não o deixa chegar ao seu destino, a não ser cumprindo algumas condições que, aquele que monopolizou, impõe: o “preço”.

O que Jesus faz é livrar o pão desse monopólio injusto. O olhar voltado para o céu e a benção são o reconhecimento de que Deus é o único dono do pão e que a Ele é preciso agradecer este dom. Liberado do monopólio, o pão, imprescindível para a vida, chega a todos sem ter que pagar um preço por ele. Em seguida, Jesus, com suas mãos solidárias, vai partindo os dons e entregando-os aos discípulos. Estes, por sua vez, prolongam as mãos de Jesus, e vão distribuindo os pães e peixes à multidão; estes alimentos vão passando de mãos e mãos, de uns aos outros. Assim, todos puderam saciar sua fome. 

A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquias, que costuma criar fissuras na comunhão. Jesus pede que todos se assentem sobre a relva para celebrar uma grande refeição. Rapidamente, tudo muda. Aqueles que estavam a ponto de se separar para saciar sua fome em sua própria aldeia, se assentam juntos em torno a Jesus, para partilhar o pouco que tem.

Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre.

Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo, carregando dentro uma vocação fraterna e universal, são dons para todos.

Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar na Sua Grande Mesa festiva. Todos se sentem pessoas dignas e amadas. É a grande refeição da inclusão de todos.

Algo inaudito está começando nesse povo com a chegada de Jesus. No Reino de Deus só há uma Mesa, à qual todos são convidados, sem discriminação sem exclusão de nenhum tipo. É assim que Jesus quer ver a nova comunidade humana. 

Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave desumanizadora” (“despede as multidões!”) ou “em chave de benção” (“os discípulos distribuíram os pães às multidões”), descobrindo na vida, para além de sua fragilidade, a presença que fazia Jesus estremecer-se de compaixão quando sentia a dura situação dos prediletos do Pai.

Assim quis Deus que nossas mãos fossem a presença e o sinal de Suas mãos criadoras, que acolhem e cuidam da mãe Terra e da vida das pessoas. Somos as mãos de Deus, não só para alimentar, mas para acariciar e curar, para cuidar do planeta terra, nossa casa, para “multiplicar vida”...

 

 Texto bíblico:   Mt 14,13-21

Na oração: quais são as duras situações das pessoas do mundo atual que fazem emergir novamente o apelo de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Deus torna visível suas mãos através de nossas mãos abertas e que compartilham. Onde você percebe que pode ser a mão bendita de Deus que atua em favor da vida?

Quando ouvimos em nossas eucaristias o grito de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”?

Nós, depois de anos seguindo a Jesus, o quê somos capazes de partilhar?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2111-somos-as-maos-de-deus

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sábado, 1 de agosto de 2020

O COMER E BEBER – Gibran Khalil Gibran

O Comer e beber

 

          Então um velho estalajadeiro disse: “Fala-nos de Comer e Beber”.

           E ele respondeu;

          Pudésseis viver do perfume da terra e, como uma planta, nutrir-vos da luz.

          Mas, já que deveis matar para comer e roubar do recém-nascido o leite de sua mãe para saciar vossa sede, fazei disso um ato de adoração.

          E que vossa mesa seja um altar onde os puros e os inocentes da floresta e da planície são sacrificados àquilo que é ainda mais puro e mais inocente no homem.

          Quando matardes um animal, dizei-lhe no vosso coração:

          “Pelo mesmo poder que te imola, eu também serei imolado, e eu também servirei de alimento para outros;

          Pois a lei que te entregou às minhas mãos me entregará a mãos mais poderosas.

          Teu sangue e meu sangue nada são senão a seiva que nutre a árvore do céu”.

          E quando morderdes uma maçã, dizei-lhe no vosso coração:

          “Tuas sementes viverão no meu corpo,

          E os brotos dos teus amanhãs florescerão no meu coração,

          E teu perfume será meu hálito,

          E, juntos, regozijar-nos-emos em todas as estações.”

 

          E no outono, quando colherdes a uva de vossos vinhedos para o lagar, dizei-lhe no vosso coração:

          “Eu também sou um vinhedo, e minha fruta será recolhida para o lagar,

          E, como um vinho novo, serei guardado em vasos eternos”.

          E no inverno, quando beberdes o vinho, que haja no vosso coração uma canção para cada taça:

          E que haja na canção um pensamento para os dias do outono, para o vinhedo e para o lagar.

 

 

(O PROFETA)

Gibran Khalil Gibran

 

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UM PENSAMENTO REVESTIDO DE BELEZA

 

          O segundo segredo está no encontro da originalidade e beleza do pensamento com a originalidade e beleza do estilo.

            Gibran descobre, até mesmo nos assuntos aparentemente banais e esgotados, aspectos frescos e sugestivos; e exprime-os num estilo quase único nas literaturas contemporâneas, em que a música, a poesia e o simbolismo do Oriente se aliam à clareza, à lógica e à concisão do Ocidente – um estilo que possui toda a magia das obras-primas religiosas do Oriente, como a Bíblia ou o Evangelho ou o Corão.

            A beleza das ideias sobre os filhos, a dádiva, a religião, o prazer, o amor, o trabalho, a liberdade, a morte, é igualada pela beleza das imagens e das parábolas com que ele as reveste.

 

“Vossos filhos não são vossos filhos,

São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.

Vêm através de vós, mas não de vós,

E embora vivam convosco, não vos pertencem”

 

“Vós pouco dais quando dais de vossas posses.

É quando derdes de vós próprios que realmente dais.”

 

“Hoje, não podeis ver nem ouvir, e é melhor assim.

Mas um dia o véu que cobre vossos olhos será retirado pelas mãos que o teceram.

E a argila que obstrui vossos ouvidos será rompida pelos dedos que a amassaram.

Então vereis,

Então ouvireis,

E não deplorareis ter conhecido a cegueira e a surdez,

Pois, naquele dia, compreendereis a finalidade oculta de todas as coisas,

E bendireis as trevas, como bendizeis a luz.”

          Em O Profeta, cada ideia se reveste de uma imagem, se transfigura em parábola; e essas imagens e parábolas, aliadas à melodia das frases, envolvem o livro numa atmosfera de encantamento irresistível.

          “Não ouvistes falar do homem que cavava a terra à procura de raízes, e descobriu um tesouro?”

          “Quando trabalhais, sois uma flauta através da qual o murmúrio das horas se transforma em melodia. Quem de vós aceitaria ser um caniço mudo e surdo, quando tudo o mais canta em uníssono?”

          “... Pois tem sido sempre assim com o amor: Ele só conhece sua própria profundidade na hora da separação.”

          Mesmo quando a ideia em si está gasta, Gibran sabe renová-la pelo esplendor da forma:

          “Ide, pois, aos nossos campos e pomares, e lá aprendereis que o prazer da abelha é de sugar o mel da flor, mas que o prazer da flor é de entregar o mel à abelha. Pois, para a abelha, uma flor é uma fonte de vida. E para a flor, uma abelha é uma mensageira de amor. E para ambas, a abelha e a flor, dar e receber o prazer é uma necessidade e um êxtase.”

 

          Num dos cadernos em que Gibran reescrevia do próprio punho as versões sucessivas de O Profeta, encontra-se, desenhada em caracteres árabes, a seguinte invocação: “Ajuda-me, ó Deus, a exprimir neste livro Tua Verdade envolta em Tua Beleza!”

          É mais uma definição feliz de O Profeta e uma das razões de seu triunfo.

 

APRESENTAÇÃO

Mansour Chalita

 

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sexta-feira, 31 de julho de 2020

O INTRÉPIDO QUE RASGOU A MULTA - Ignácio de Loyola Brandão



J
e donne des aulas na Sorbonne. Foi o que disse um desembargador ao rasgar a multa na cara do guarda. Que orgulho deve ter sentido dessa coragem. Tornou-se homem, desafiador. Levitou. A frase em francês, por ele dita ofenderia os ouvidos de Fanny Marracini, que morreu quase aos 100 anos, depois de ter ensinado dezenas de gerações de araraquarenses a ler e a falar francês. Mon Dieu! exclamaria horrorizada, porque amava como poucos a língua. Nunca me esqueço do primeiro dia em que entrou na classe, nos levantamos e ela cumprimentou: “Bom dia, meus alunos”. Seguido por: “Esta é a primeira e última vez que vocês ouvem falar português em minhas aulas”. Emendou: “Bonjour mes enfants”. 

Realmente, dali para a frente só ouvimos francês e aprendemos, muitos ainda o usam como segunda língua. Pessoas como Sidney Sanchez, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, Zé Celso que leu L’Être et le Neant no original, a Luis Roberto Salinas Fortes, que traduziu Sartre e se tornou professor de filosofia de primeira na USP ou o irmão dele, Hugo Fortes, advogado de nomeada que leu Balzac inteiro aos 20 anos também no original, ou Celso Lafer, o humanista e diplomata.

Fanny ao ouvir a frase em suposto francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não. Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem sabe no ugarítico?

Lembrei-me de uma história acontecida comigo e com o jornalista Humberto Pereira, o criador dessa joia que é o Globo Rural. Estávamos em Paris, décadas atrás, e ele me viu saindo da Sorbonne, nas proximidades da Rue Cujas, onde eu estava hospedado. “O que estava fazendo aí?”, ele indagou. Sorri: “Ora, estudo aqui, pós-graduação”. Mostrei três livros comprados na Livraria LGDJ, ali vizinha, especialista em obras jurídicas, a pedido de meu amigo Fernando Passos, advogado de minha terra. Pereira abriu os olhos deste tamanho, mas entendeu, me fez um sinal: você não perde por esperar. Não revelei que vi uma porta por onde alunos entravam, fui atrás, queria ver por dentro escola tão famosa. Andei um pouco, fui interpelado por um bedel e posto para fora. 

Na mesma viagem, cheguei a Milão e Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?

O que me incomodou foi um homenzinho que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto. Quem não sabe ler e escrever.

Fiquei intrigado. Como pode ser analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei. Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender. Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto? 

Naquela hora me veio velhíssima história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente, que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante dignidade. 

O Estado de S. Paulo, 24/07/2020


https://www.academia.org.br/artigos/o-intrepido-que-rasgou-multa

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.


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CYRO DE MATTOS PUBLICA LIVRO DE PROSA E POESIA DE AUTORES DO SUL DA BAHIA


                        Cyro de Mattos Publica

Livro de Prosa e Poesia

De Autores do Sul da Bahia

         

          Membro das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna,  publicado também  no exterior, Doutor Honoris Causa da UESC, autor de extensa obra, de vários gêneros, o escritor e poeta Cyro de Mattos acaba de publicar pela editora baiana Via Litterarum o livro “Poesia e Prosa no Sul da Bahia", com capa do consagrado desenhista Juarez  Paraíso,  também membro da Academia de Letras da Bahia. Na obra, estuda  autores  que enfocam em seus textos a  civilização cacaueira ou mantém com ela  laços de origem,  sintonizados na raiz com  um contexto de natureza  cultural singular e importância histórica. 

           Segundo Cyro de Mattos, esse livro de ensaios, alguns escritos ao longo do tempo,  reúne  nomes consagrados que  ultrapassaram as fronteiras nacionais, outros que  são reconhecidos em nível nacional e alguns que  são retirados   dos limites de seu município, onde se encontram,  por certas circunstâncias,  fora de uma circulação literária  mais abrangente, o que nem sempre parece justo.  A obra  funciona como testamento crítico valioso  sobre a produção  de uma região poderosa no campo das letras,  que    vem contribuindo para a expansão do acervo cultural e literário da Bahia e até mesmo do Brasil.

            No alentado volume de 350 páginas, o escritor e poeta  estuda obras de 47 autores sulinos  do  Estado da Bahia, assim  elencados:

           I – PROSA. De autor adulto  para infantojuvenil, Adonias Filho;  precursor e pré-modernista, Afrânio Peixoto; Emoção do contista, Aleilton Fonseca; Absurdo e galhofa, Augusto Mário Ferreira; Nascimento do Brasil, Aracyldo Marques; Romancista do Vale do Rio de Contas, Clodomir Xavier de Oliveira; Legado no labirinto, Elvira Foeppel;  Humor do  novelista,  Euclides Neto; Relato do mato virgem, (Ferdinand Maximiliano von Habsburg; Mestre da crônica, Fernando Leite Mendes; No mar de Azov, Hélio Pólvora; Chamado do mar, James Amado; Prosador grandão e poeta , Jorge Amado; Dramaturgo exemplar , Jorge Araújo; Contista de Água Preta, Jorge Medauar; Tramas na adolescência, Lilia Gramacho; Caminhos de Adonias Filho, Ludmila Bertié;  Mares do Sul, Marcos Santarrita; Cronista na província, Manoel Lins;  Dobras do  tempo,  Margarida Fahel; Ilógico da vida, Naomar de Almeida Filho; Historinhas e mundinhos, Odilon Pinto; Retrato do mundo real, Ricardo Cruz; Testamento lírico, Ritinha Dantas; Narrador de itan, Ruy Póvoas;  Outro precursor , Sabóia Ribeiro, Atritos e Conflitos, Sonia Coutinho.

          II – POESIA. Colhedor de haicai, Abel Pereira; Tanta dor, poesia,  Adelmo Oliveira; Rosa com agruras, Ariston Caldas; Rio das solidões, Carlos Roberto Santos Araújo; Musa delicada, Conceição Nunes Brook; Resistência santa, Firmino Rocha; Poética enorme, Florisvaldo Matos; O pássaro do poeta, Hélio Nunes;  Casa onde habitamos, Heloísa Prazeres; Ditado do poeta, Ildásio Tavares; Lira descuidada, Iolanda Costa; Do jeito que o povo gosta, Minelvino; Cacau em versos, Oscar Benício dos Santos;  Soneto e cordel, Piligra; O tempo na pulseira, Renato Prata; Poesia com alforrias , Rita Santana; Singular e plural, Sosígenes Costa; Questões profundas, Telmo Padilha; Canto contido, Valdelice Soares Pinheiro; Discurso existencialista, Walker Luna.


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